Deparo-me com um webinar patrocinado pela Pfizer ( ó pá!) e organizado pela Câmara do Comércio Americana em Portugal (ó pá! ó pá!), no mês de Outubro passado, onde o pneumologista Filipe Froes, no seu estilo peculiar e já nada inocente, carrega na tecla de assemelhar a pandemia da covid com a Gripe Espanhola. Chega mesmo a afiançar que a mortalidade da covid é "superior à da gripe espanola" (vd. imagem).
Um pouco mais atrás, neste seu discurso, contrapõe que a covid apresenta uma taxa de letalidade de 3,0%, "muito próxima da letalidade da Gripe Espanhola".
Pessoalmente, começo a ter algumas dificuldades em conter a minha verve perante este tipo de discurso, que tem sido a mãe de todos os pânicos e da deriva totalitária que vivemos. Filipe Froes pode entender de pulmões e suas doenças, mas aquilo que anda a fazer é espalhar pânico com um poder de transmissibilidade superior ao SARS-Cov-2.
Isto não pode continuar. Isto roça já o discurso criminoso, insano, assassino... São demasiadas mentira e manipulações. A seriedade e a ética foram as principais vítimas desta pandemia.
Sejamos rigorosos. A pandemia da covid - e os seus efeitos secundários, decorrentes sobretudo do colapso do SNS para tratamento de outras doenças - causou um acréscimo de cerca de 12 mil óbitos em Portugal no ano de 2020 face à média dos últimos cinco anos. O seu impacte na taxa de mortalidade foi de 0,11 pontos percentuais (ou 1,1 por mil) em relação ao ano anterior. Por seu lado, o impacte da Gripe Espanhola na taxa de mortalidade em 1918 foi um acréscimo de 1,87 pontos percentuais (ou 18,7 por mil) em relação ao ano anterior. Ou seja, a Gripe Espanhola teve um impacte na taxa de mortalidade 17-dezassete-17 vezes no seu ano mais mortífero superior à pandemia da covid em 2020.
Aliás, com base na subida da taxa de mortalidade de 21,5 por mil em 1917 para 40,2 por mil em 1918), e considerando que a população portuguesa à época rondava 6 milhões, pode estimar-se que a Gripe Espanhola terá causado, só em 1918, um acréscimo de cerca de 112.000 óbitos [nos anos seguintes, a taxa de mortalidade já foi bastante inferior, cf. gráfico que anexo).
Notem, com a actual população, se porventura o SARS-CoV-2 fosse tão mortífero como o vírus da Gripe Espanhola, causando um acréscimo de 1,87 pontos percentuais na taxa de mortalidade, em vez dos tais cerca de 12 mil óbitos a mais (covid mais acréscimo não-covid), teríamos um acréscimo de cerca de 192 mil óbitos! Reparem: tivemos mesmo assim 12 mil óbitos a mais; teríamos 192 mil óbitos a mais se 2020 fosse como 1918 foi. E em vez de uma mortalidade TOTAL (todas as causas) no ano de 2020 de 123 mil óbitos, estaríamos agora a chorar a morte de 315 mil pessoas.
Quem acha ainda que a Covid é igual à Gripe Espanhola?
E quem acha ainda que gente como Filipe Froes deve ser a referência para aquilo que anda a passar e a fazer no país? Quem nos inventa uma vacina anti-Froes?
P.S. Já agora deixo uma imagem de um trecho dos Censos de 1920 (INE), onde se destaca o impacte demográfico da Gripe Espanhola na população. Além da elevadíssima mortalidade, teve também um óbvio impacte na nupcialidade e nos nascimentos (até porque, ao contrário da covid, a Gripe Espanhola matou muitos jovens).
Link para o webinar, aqui.
O Dr. Filipe Froes tem avultados conflitos de interesses com a indústria farmacêutica. São declarados publicamente na Plataforma Transparência e Publicidade (Infarmed), mas creio que não são de facto do conhecimento público. Por cada uma destas palestras, o Dr. Froes aufere quase mil euros. A Pfizer é uma das empresas mais generosas: de uma assentada pagou mais de 5.500 euros por 6 reuniões médicas. Ao longo do ano 2020 - a coberto de consultoria, formação e palestras (essencialmente dedicadas à COVID-19) - o Dr. Froes (a título pessoal ou através de empresa) encaixou mais de 50 mil euros da indústria farmacêutica. Acho incrível que a uma pessoa com estas relações e interesses seja visto como um insuspeito consultor da DGS e coordenador de um tal "gabinete de crise" da Ordem dos Médicos, para além de comentador privilegiado na comunicação social.
ResponderEliminarÉ a chamada ignorância froesiana. Caso seja apenas ignorância, o que duvido.
ResponderEliminarDo artigo científico "Infection fatality rate of COVID-19 inferred from seroprevalence data", publicado no Bulletin of the World Health Organization:
«Across 51 locations, the median COVID-19 infection fatality rate was 0.27% (corrected 0.23%) (...). In people <70 years, infection fatality rates ranged from 0.00% to 0.31% with crude and corrected medians of 0.05%.»