terça-feira, 28 de abril de 2020

DO VERDADEIRO IMPACTE DA COVID ENQUANTO EM LISBOA SE OLHA PARA O UMBIGO

Se isto fosse um artigo de jornal, o título seria: “Variação da taxa de mortalidade sobe mais de 40% em 45 concelhos”. E depois, como lead, acrescentaria: “Incremento dos óbitos nas primeiras semanas da pandemia atingem gravemente as regiões de Aveiro, Grande Porto e Minho”. A acompanhar o texto, com o devido enquadramento, com legenda, colocaria o gráfico que acompanha este post. E depois passava à escrita. Mas, como isto não é um jornal, explique-se então o que o gráfico mostra, que é algo pouco agradável.

Como devem imaginar, se analisado ao nível de concelho, a mortalidade varia bastante. Se um concelho tiver muitos idosos, a probabilidade de aí ocorrerem mais mortes é mais elevada do que num concelho com mais juventude. E daí as taxas de mortalidade serem maiores no primeiro caso do que no segundo. Por exemplo, um concelho como Vila Nova de Foz Côa tem uma taxa de mortalidade, em situação normal, cerca de três vezes superior a um concelho como Vizela, em pleno Vale do Ave.

Ora, quando se quer analisar com detalhe situações anómalas com incidência na mortalidade – e que deve constituir um alerta para se investigar o que anda a suceder de errado num sistema de saúde – um indicador perfeito é a variação da taxa de mortalidade. Mas não pode ser vista ao nível do país, porque ficará sempre “mascarada” pelos concelhos de maior dimensão, mas sim ao nível concelhio.

Aquilo que fiz foi basicamente, através da mortalidade registada nas semanas de 12 a 16 (16 de Março a 23 de Abril), e pegando nos dados populacionais dos Censos 2011 (os últimos), calcular a taxa de mortalidade para cada concelho, tanto no ano de 2020 como na média dos anos de 2014 a 2019. Com base nestas duas taxas de mortalidade, calculei a variação da taxa de mortalidade, em percentagem, que permite assim observar o efeito da pandemia, e seus efeitos colaterais, num nível mais micro (à escala concelhia), que no gráfico é apresentado no eixo do X. Reparem, desde já, que existem valores negativos, o que significa que existem municípios que estão a passar incólumes à pandemia. E é aqui que se revela algo assustador, sobretudo quando se cruza com a incidência relativa de casos positivos de covid (eixo do Y no gráfico). Notem que, por via de alguns concelhos serem muito pequenos, nesta análise acabei por excluir os concelhos com menos de 10 mil habitantes, desde que não tivessem ultrapassado os 20 óbitos no período em análise no ano de 2020, pois aí pequenas variações nos óbitos dão variações artificialmente grandes em percentagem.

Se repararem, sendo que cada bolinha colorida representa um concelho (não identificáveis no quadro por uma questão de leitura), há uma grande diversidade no que respeita à variação da taxa de mortalidade (lendo o eixo do X):

  • 45 concelhos registarem uma variação da taxa de mortalidade superior a 45% (bolas vermelhas);
  • 49 concelhos com variação entre 20% e 40% (bolas roxas);
  • 44 concelhos com variação entre 10% e 20% (bolas amarelas)
  • 26 concelhos com variação entre 0% e 10% (bolas azuis)
  • 36 afortunados concelhos com variação negativa, ou seja, este ano morreram menos pessoas do que a média (bolas verdes).


Note-se que, globalmente, a variação em Portugal (no total) foi de 11,9% (a mortalidade em 2020, para este período, foi de 11,9 óbitos por 10 mil habitantes, que confronta com 10,0 óbitos por 10 mil habitantes). Lisboa teve uma variação de “apenas” 4,2%, portanto, bem abaixo da média (por isso, na capital, olhada pelos media como o País, tudo parece correr bem).

Como se nota, e usando o eixo dos Y, e cruzando com a incidência de casos positivos por covid-19 (ATENÇÃO, que está em razão da população de cada concelho, o que faz destacar pequenos concelhos mesmo com um número absoluto de casos muito inferior à das grandes cidades), há alguns concelhos com grande variação na taxa de mortalidade e elevada incidência de casos positivos. Posso dizer que os dois que mais se destacam são Vila Nova de Foz Côa (variação na taxa de mortalidade de 110,8%) e Ovar (variação de 89,0%).

Porém, retirando estes casos, aquilo que verdadeiramente ressalta é a inexistência de qualquer correlação entre variação da taxa de mortalidade e incidência OFICIAL de casos positivos de covid-19, porquanto há uma quantidade muito significativa de concelhos com elevada variação da taxa de mortalidade, mas com uma relativa baixa incidência de casos positivos. Note-se: escrevi OFICIAL em maiúsculas exactamente para destacar que o número de casos positivos feitas pelas autoridades pouco mostram sobre a realidade. Abordarei isso com maior detalhe num post futuro quando me debruçar sobre quatro regiões concretas: 1) concelhos em redor de Ovar; concelhos no Alto Minho; um núcleo de concelhos ligados a Braga; e um grupo específico de dois concelhos do Grande Porto.

Isto daria quase para um livro, mas fixem, para terminar, seis aspectos fundamentais,

1) A mortalidade nas primeiras semanas da covid aumentou para níveis preocupantes em alguns concelhos do país nas primeiras semanas da pandemia (a partir da segunda semana de Março), embora mascarada pelos desempenhos menos graves sobretudo a sul do Mondego, o que faz com que a média nacional pareça preocupante. Existem "pequenas Itálias" entre nós.

2) Aparentemente não existe uma relação directa e imediata entre o aumento da mortalidade e a incidência da covid, mas em algumas regiões essa situação pode-se-à dever sobretudo ao facto de não se terem feito muitos testes e, portanto, acabarem por ocorrer muitas mortes que não foram contabilizadas como causadas, directa ou indirectamente, por covid.

3) A ausência de dados da DGS sobre as mortes atribuídas à covid por concelho impede de conhecer qual o efectivo peso desta doença no acréscimo de mortalidade

4) Constata-se a ausência completa de uma análise contínua das variações das taxas de mortalidade por parte das autoridades de Saúde. O sistema de registo de óbitos (SICO), quase em tempo real, não é uma coisa coisa para aligeirar a burocracia; é um poderoso instrumento útil de saúde pública, desde que utilizado para dar alertas. Se assim fosse, ter-se-ia mostrado muito útil no caso da cerca sanitária em Ovar, pois mostaria que devia ser alargada a outros concelhos. Mas esta parte fica para um próximo post.

5) Continua sem se fazer uma análise séria sobre o verdadeiro impacte qiue o medo trouxe à ida às urgências (com as consequentes repercussões no aumento da mortalidade por enfartes e AVC, por exemplo), e em que concelhos isso se verificou mais, de modo a gizar-se uma estratégia que passe para além dos apelos públicos.

6) Mantenho a minha opinião, alicerçada por dados, de que a covid-19 constitui um gravíssimo problemas para a população mas não para a população em idade activa (para o trabalho, claro), pelo que se tem de encontrar um equilíbrio (e com investimentos) que façam reactivar a Economia mas sem criar "guetos de idosos", remetidos a uma redoma isenta de afectos e qualidade de vida.

Num post autónomo, porque este já vai bem longo, colocarei a lista dos concelhos com maiores variações das taxas de mortalidade.


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