quarta-feira, 29 de abril de 2020

DO ELOGIO DA CERCA DE OVAR, ONDE AFINAL SE MORREU TANTO DENTRO COMO FORA

A Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência (EMEE), criada pelo próprio Governo, e apenas com entidades do Estado, aplaudiu-se com o sucesso da cerca sanitária de Ovar, levantada no dia 17 de Abril, e em vigor durante um mês. Li isso no Público, e tremi: não se fazia qualquer avaliação do ponto de vista de impacte em termos de saúde pública. A autarquia disse, entretanto, que gastou 275 mil euros à conta da pandemia. Valeu a pena isto tudo? Uma resposta com três letras: NÃO!
Vou explicar, tintim por tintim, porque NÃO. E o NÃO, não é por ter sido desnecessária, mas por ter sido mal feita. Muito mal feita, e isso terá custado muitas vidas. E muito provavelmente salvou poucas. Não faço isto, portanto, por pirraça, porque pessoal e profissionalmente tenho mais a perder do que a ganhar. É por medo! É porque estamos entregues, as nossas vidas, a quem anda sem rumo, numa pseudo-estratégia, que parece científica, mas afinal é às cegas.
Vamos por partes. Quando a cerca sanitária de Ovar foi criada, em 17 de Março, aquele município destacava-se por um número então considerado significativo de casos: 55, num município de cerca de 50 mil habitantes. Supostamente, os outros concelhos das redondezas não tinham problema similar. Então, o município de Espinho contava 8, Vila da Feira 31, Oliveira de Azeméis 11, e Estarreja e São João da Madeira 0. Fechou-se só e só Ovar, e a vida e a morte continuaram o seu rumo. Dentro de Ovar, mas afinal também, e bem mal, nos concelhos das redondezas.
Note-se, primeiro, que depois de ser levantada a cerca sanitária há cerca de uma semana (17 de Abril), os casos acumulados de covid-19 em Ovar (551 casos, ou 92 por 10 mil habitantes) são incomensuravelmente superiores aos dos seus vizinhos, mesmos e estes subiram nas últimas semanas: Vila da Feira (340 casos, ou 24 por 10 mil habitantes), Oliveira de Azeméis (150 casos, ou 22 por 10 mil habitantes), Estarreja (56, ou 21 por 10 mil habitantes), Espinho (56, ou 18 por 10 mil habitantes).
Porém, como já tenho alertado (e não só eu), a maior ou menor detecção de casos positivos depende da estratégia seguida. Ou seja, teria sido muitíssimo recomendável que se tivesse feito, aquando da decisão de encerrar o município de Ovar, uma rápida averiguação, através de testes, da situação dos concelhos em redor. E, porventura, alargar a cerca sanitária para uma área de maior dimensão, tanto mais que não seria suposto que o coronavírus atacasse apenas numa base regional. Mas não, quis mostrar-se logo "serviço". Uma cerca ficava sempre bem, e mostrava ao país que o Governo agia!
Pois bem, fez-se apenas o cerco no concellho de Ovar. E vamos agora olhar os resultados, mas com dados sérios, que é aquilo que a DGS e a EMEE deveriam ter feito, e não quiseram fazer ainda.
Conforme podem observar nos gráficos e quadros, o muito significativo acréscimo de mortalidade TOTAL (e é isso que interessa, independentemente da causa oficial) no concelho de Ovar foi 42 óbitos (+ 91,1%)) em relação à média (últimos seis anos) da semana 12 (16 de Março) à semana 16 (19 de Abril). Não são divulgados dados individualizados pela DGS, mas neste caso acredito que as mortes por covid terão andado nesta ordem de grandeza para este município. Porém, significativos incrementos de mortalidade, e em alguns dos casos muitos similares, tiveram os concelhos em redor.
Com efeito, em relação à média e em igual período, Estarreja teve um acréscimo na mortalidade total de 91,1% (mais 24 óbitos) e em São João da Madeira foi de 81,3% (mais 13 óbitos). Os outros três concelhos tiveram também acréscimos muito, mas mesmo muito significativos, mas de menor percentagem. Em todo o caso, se Ovar teve este incremento de 41 óbitos (mesmo com a cerca sanitária), os outros concelhos limítrofes tiveram, no conjunto, um excesso de mortes de 131! Tudo isto sem que os concelhos em causa, com um comportamento similar a Ovar, tenham OFICIALMENTE uma incidência de casos positivos (em número absoluto e relativa à população) sequer próxima daquele município cercado ao longo de um mês.
Os gráficos e o quadro detalhado que apresento, além de informação que serviu para esta análise, mostram também que a situação nos concelhos limítrofes de Ovar foi similarmente grave em outros indicadores (p.ex., variação da taxa de mortalidade).
Esta continuidade geográfica, que indicia "ataques" de covid com incidências na mortalidade, não é caso único em Portugal. Não vou aqui apresentar esses cálculos, mas consegui identificar mais dois casos de descontrolo geográfico com variações de taxas de mortalidade elevadíssimas em concelhos limítrofes:
1) no Alto Minho, agregando os municípios de Melgaço, Monção, Valença e Vila Nova da Cerveira;
2) na zona de Braga, agregando Braga, Póvoa de Lanhoso, Vieira do Minho e Cabeceiras de Basto. Também aqui é muitíssimo provável que a covid-19 tenha atacado e bem, de forma silenciosa.
E, portanto, posto isto tudo, que é muito, torna-se legítimo, mais que legítimo colocar…eu ia colocar três questões, mas na verdade há muitas mais. A começar por esta: a Autoridade de Saúde sabe o que anda a fazer ou isto não está a descambar por pura sorte? E o que nos pode esperar o futuro? Esta gente é de confiança?




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