domingo, 26 de abril de 2020

DO MILAGRE PORTUGUÊS ALDRABADO

Como muitos sabem, fui jornalista. Não me deixa demasiadas saudades, mas o “bichinho” continua bem vivo, e daí as minhas investigações e análises em tempos de covid-19. E desconfianças, que é a melhor virtude de um jornalista. Nunca acreditem, se forem jornalistas, cegamente na informação que vos dão. Ou melhor, pode-se acreditar mas essa é apenas uma primeira fase; a segunda, é confirmar a veracidade dessa informação acreditada. Sempre.
Pois bem, isto a propósito de um alerta amigo sobre os dados do excesso de mortalidade da Europa, que constam do site do European Mortality Monitoring Project (Euromomo, vd. https://www.euromomo.eu/graphs-and-maps
), onde é possível consultar os dados individualizados de cada país, embora padronizados (Z-scores). Mesmo se essa padronização, que permite comparações de países de dimensões populacionais diferentes, “esconde” os números absolutos, uma coisa me fez desconfiar (aí está): Portugal não apresentava qualquer acréscimo de mortalidade. Ora, isto contrariava o que eu tenho vindo a escrever (inclusive, ontem), e mesmo o que defendeu uma recente análise do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Fui investigar, reconfirmando os meus cálculos e conferido os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

Encontrava-me nesta tarefa quando, notando que o site tem registado algumas alterações de funcionalidades, o link da “Vigilância” dá ligação para a página https://evm.min-saude.pt/#shiny-tab-p_euromomo
 . Reparem: Euromomo. Visualizando essa página, nota-se que, além da variação da mortalidade (óbitos observados), consta a linha base (óbitos expectáveis) e dois limites de confiança (superior, a 95% e 99%). Até aqui tudo bem, excepto no facto de, também aqui, não se notar qualquer excesso de mortalidade no período de Março e Abril. Muito estranho pensei eu… até que passei o rato nas linhas… e descobri que havia gato.

Com efeito, os valores que constam neste link – e que tudo indicam são enviados para o Euromomo – são invariavelmente menores do que os que constam nos quadros da SICO (vd. os links “Mortalidade diária” ou “Quadros”). E não é meia dúzia de óbitos. No período entre 15 de Março e 23 de Abril (40 dias), a informação enviada para o Euromomo contabiliza 13.085 óbitos (contabilizei dia-a-dia, com recurso ao rato). No sistema para consumo interno obtém-se um total de 14.249 óbitos. A diferença é de 1.164 mortos! Fazendo-os “desaparecer” nas estatísticas europeias “desaparece” assim, como passe de mágica, qualquer excesso de mortalidade em Portugal. E assi temos o milagre português, para inveja de todos os europeus e orgulho do Governo e Presidente da República, que nos prometeu que ninguém iria mentir.
Para confirmar o que escrevo, basta usarem os passos que aqui descrevi. Em todo o caso, coloquei duas fotos exemplificativas dos dados de 4 de Abril (o dia mais mortífero): no link referente aos dados do Euromomo aparece, para esse dia, 389 óbitos. Na realidade, segundo os dados oficiais do SICO, para consumo interno, houve 421 óbitos. Em termos médios, por dia, as estatísticas europeias têm sempre menos 29 mortos por dia. Estes continuam mortos. Mas fazem um milagre português!




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