domingo, 31 de maio de 2020

DO ENTENDIMENTO (COMPLETO) DA PANDEMIA EM PORTUGAL

Hoje faço uma longa análise (preferia que fosse a DGS a fazer, pois eu não sou, nem me pagam para ser, autoridade de saúde) para uma melhor compreensão da evolução da pandemia da covid-19 em Portugal. Para mim foi bastante útil; espero que vos seja também, pois não vi, até agora, esta análise feita em mais lado algum (mesmo sendo simples).

Explico a metodologia, que explica os três elucidativos gráficos em baixo, para apurar a evolução desde Março. Pegando nos boletins diários da DGS, defini seis períodos temporais: primeira quinzena de Março (1QMar), segunda quinzena de Março (2QMar), primeira quinzena de Abril (1QAbr), segunda quinzena de Abril (2QAbr), primeira quinzena de Maio (1QMai) e segunda quinzena de Maio (2QMai). Para cada período, apurei o número de casos positivos e o número de óbitos, em função dos nove grupos etários determinados pela DGS, padronizando para uma média diária, visto que a segunda quinzena de Março teve 16 dias e a segunda quinzena de Maio só contabilizou 14 dias (últimos dados do dia 29). Reparem que a análise é feita período a período, e não acumulado, de sorte que, desta forma, se tem o retrato de cada quinzena, e da evolução sequencial das quinzenas. Deste modo, os resultados que se obtêm são extremamente interessantes e elucidativos. Comecemos pelo primeiro.

Através do número médio diário de casos positivos (apesar de ser apenas a ponta do icebergue) percebe-se de imediato que o grande problema esteve, até ao final da primeira quinzena de Abril, na elevada contaminação dos maiores de 80 anos, o que indiciará que o controlo das transmissões nos lares foi complicada e somente se conteve somente na segunda quinzena de Abril. Com efeito, na segunda quinzena de Março, que já contou com o confinamento de duas semanas (iniciado no dia 18), o grupo dos maiores de 80 anos estava apenas na 4ª posição em casos positivos (58 por dia), atrás dos grupos dos 40-49 anos (91 casos por dia), dos 50-59 anos (89 casos por dia) e dos 60-69 anos (69 casos por dia).


No final da primeira quinzena de Abril, com o confinamento a completar quase um mês, o grupo dos maiores de 80 anos passou a ser o mais contaminado, passando a registar, neste período, 127 casos positivos por dia, um crescimento de 120% comparativamente à quinzena anterior, ficando ligeiramente à frente dos grupos dos 50-59 anos (120 casos diários) e dos 40-49 anos (116 casos diários). Note-se que todos os grupos etários, em maior ou menor grau, registaram aumentos de contaminações diárias entre a segunda quinzena de Março e a primeira quinzena de Abril. Tendo em conta o período de incubação médio (e até o máximo) seria expectável que a primeira quinzena (já bem dentro do período de confinamento) tivesse menos casos do que a segunda quinzena de Março (que apanhou casos de transmissão anteriores ao confinamento). Nessa medida, o confinamento parece não ter sido completamente eficaz.

A segunda quinzena de Abril já evidenciou uma ligeira melhoria nos maiores de 80 anos (os mais vulneráveis), que neste período contabilizou 73 casos diários, mas mesmo assim continuou a ser o maior registo em comparação com os outros grupos, que também desceram consideravelmente.

Maio, felizmente, mostrou uma evolução muito mais favorável. Na primeira quinzena de Maio, os maiores de 80 anos tiveram apenas 27 casos positivos por dia, que contrasta com valores mais elevados, na casa dos 40 por dias, nos grupos etários que englobam os adultos entre os 20 e os 59 anos. A segunda quinzena ainda apresentou melhor resultados: os maiores de 80 anos apenas tiveram 14 casos positivos por dia, sensivelmente tanto como o grupo dos 70-79 anos.

Um outro dado curioso, apesar dos alertas dos últimos dias relativamente aos focos na Grande Lisboa: Maio – que engloba o desconfinamento no início desse mês e também a maior abertura à actividade económica e à movimentação das pessoas – apresenta menos casos positivos do que o mês de Abril (confinamento total). E a segunda quinzena de Maio (242 casos positivos por dia) até apresenta níveis de contaminação inferiores à primeira quinzena de Maio (255 casos). Por outro lado, curiosamente, os grupos mais jovens (crianças e jovens em idade escolar) registaram em Maio níveis de contaminação mais baixos do que em Abril, mesmo se naquele mês eram bastante baixos.

Em conclusão, o desconfinamento não evidencia a ocorrência de um agravamento nas contaminações; pelo contrário.

Quanto ao segundo gráfico, mostra o óbitos diários em cada quinzena por grupo etário. Neste caso, embora haja uma relação directa entre o número de casos positivos, convém alertar que não deve ser feita uma comparação directa entre os casos positivos e os óbitos no período, uma vez que uma parte substancial dos óbitos em determinado período são devidos a contaminação no(s) período(s) anterior(es). Em todo o caso, uma notória evidência, que já se sabia, mas que no gráfico se torna muitíssimo mais visível: em qualquer dos períodos, o grupo dos maiores de 80 anos é, com grande distância de todos os outros, com mais vítimas, tendo atingido o pico na primeira quinzena de Abril (quase 20 óbitos por dia), descendo para 18 por dia na segunda quinzena de Abril, e registando depois uma forte descida em Maio para os 8-9 óbitos diários. Face ao diferimento entre a data das contaminações e os desfechos fatais será expectável que o número de óbitos nesta faixa etária se mantenha ainda por mais cerca de um mês, mesmo se as novas contaminações estiverem aos níveis da segunda quinzena de Maio.


Outra evidência a partir deste segundo gráfico é a menor gravidade, em termos de desfechos fatais, para o grupo dos 70-79 anos, que tiveram o pico de óbitos também na primeira quinzena de Abril, mas muito mais baixo (cerca de 6 óbitos diários), rondando em Maio cerca de dois óbitos por dia.

Note-se que a menor gravidade da covid no grupo dos 70-79 anos face ao grupo dos maiores de 80 ainda é reforçada por serem um grupo mais abundante. Com efeito, de acordo com as estimativas do INE existem cerca de 965 mil pessoas com idades entre os 70 e 79 anos, enquanto os maiores de 80 anos são cerca de 661 mil. Para os restantes grupos etários, apenas para os adultos entre os 60 e 69 anos a covid teve algum grau de letalidade minimamente relevante, mas apenas com um pico de cerca de três óbitos diários na primeira quinzena de Abril, baixando para valores médios inferiores a um óbito nas quinzenas seguintes. Os outros grupos, como já se tem evidenciado, a probabilidade de morte por covid é extremamente baixa, muito menor do que morrer de acidente automóvel.

Por fim, o terceiro gráfico, mostra, para cada período (quinzena), a taxa de letalidade (óbitos por casos positivos), mas neste caso tendo em consideração os casos e os óbitos de todos os períodos anteriores. Deste modo, observa-se como tem este indicador evoluído, fazendo-se notar que o seu crescimento não advém de um aumento da perigosidade, mas sim, entre outros factores relacionados com a maior incidência de testes (e detecção de casos positivos), com o diferimento de muitos óbitos para a(s) quinzena(s) posterior(es) às contaminações. Com o tempo, a curva da letalidade tende a estabilizar-se, o que já começa a se evidenciar em alguns grupos etários. Este gráfico reforça assim a perigosidade da covid no grupo dos maiores de 80 anos (perto dos 20%) e da irrelevância da pandemia para os menores de 60 anos (excepção para casos muito pontuais).


Note-se, porém, que a taxa de letalidade deve ser interpretada com muita prudência, tendo em consideração que se refere ao número de óbitos por casos positivos, e não por contaminados. Por exemplo, na Espanha, os resultados de testes serológicos indicaram que 5% dos maiores de 80 anos tinham anticorpos da covid. Mesmo que em Portugal o SARS-CoV-2 tivesse contaminado apenas metade dessa percentagem (2,5%), significaria então que cerca de 165 mil idosos portugueses com mais de 80 anos tinham sido contaminados (0,025*165 mil), donde a taxa de mortalidade efectiva seria de 5,7% (face aos 936 óbitos até agora registados). Se consideramos uma taxa de contaminação de 2,5% para toda a população, então a taxa de mortalidade da covid baixaria para cerca de 0,5%.

Haveria mais conclusões a retirar, mas fico por aqui.

Bom dia. E boa sorte.

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