domingo, 19 de julho de 2020

DO RAIO-X À NOSSA DESGRAÇA EM UMA ÚNICA IMAGEM

Costuma-se dzer que uma imagem vale por mil palavras. 

O gráfico que vos apresento é essa "imagem", neste caso aquela que melhor consegui até agora (julgo) para transmitir estes tempos distópicos que vivemos sob a batuta da covid. 

O gráfico que vos apresento é essa "imagem", neste caso aquela que melhor consegui até agora (julgo) para transmitir estes tempos distópicos que vivemos sob a batuta da covid. O SARS-CoV-2 é, efectivamente, perigoso e letal (sobretudo para os mais idosos), mas a gestão política (e técnica) da pandemia tem sido mais mortífera. Infelizmente, na minha opinião, alicerçada por factos, as opções de política de saúde (health policy, não confundir, portanto, com questões político-ideológicas), incluindo decisões, inacções e omissões, estão a ajudar a levar à tumba mais pessoas do que a covid-19.

Ora, mas que mostra o gráfico? Mostra, ao longo dos meses de 2020 e até ontem, a evolução do excesso de óbitos (e em dois pequenos períodos, em Janeiro e Fevereiro, uma redução favorável, devido a rápido desaparecimento do habitual surto gripal deste ano) em relação à média (mortalidade expectável), calculada para o período 2009-2019.

Parece-me ser de fácil interpretação, mas dou-vos a minha:

a) estamos em Julho, agora mesmo, no presente, a viver a crise de mortalidade de mortalidade mais grave deste ano, pavorosa mesmo, que é bem superior ao pico da pandemia em Abril. O excesso de mortalidade chegou ontem aos 105 óbitos (em Abril, o pico rondou os 80, sendo que cerca de 30 óbitos eram de covid; agora a média de óbitos por covid é de apenas 4!), "ajudado" pelo tempo quente (que eu já avisara há dias poder vir a provocar mortalidade elevada, devido sobretudo à maior fragilidade da população vulnerável e à pouca relevância que o SNS sempre botou a estes eventos meteorológicos; notem porém que nem sequer estamos ainda em fase de onda de calor do ponto de vista meteorológico, estando as temperaturas da última semana muito aquém da situação vivida em Julho de 2013 e Agosto de 2018).

b) a subida recente do excesso de mortalidade tem uma inclinação pavorosa, fruto de sete dias contínuos de mortalidade bem acima dos 300 óbitos. A média móvel de cinco dias tem sido largamente superior a 300 óbitos há 11 dias consecutivos (a média no período 2009-2019 varia entre os 260 e 270 óbitos por dia). Ontem, dia 18, fixou-se nos 364 óbitos. 

c) O impacte directo do SARS-CoV-2 (através da mortalidade por covid-19) foi importante na segunda quinzena e relevante em Abril), mas nunca conseguiu "explicar "o excesso de mortalidade que se "instarou" em Portugal desde Março. Têm sido colocadas hipóteses (a evidente fuga das urgências, com efeitos adversos na ocorrência de doenças súbitas fatais), mas parece-me existirem já factores “estruturais”: em finais de Maio (vejam o pico de excesso, que atingiu cerca de 60 óbitos) já tinha havido uma pequena onda de calor, denunciando uma grande vulnerabilidade na população mais idosa (sempre a mais vulnerável). Escrevi sobre isso na altura. Agora, essa vulnerabilidade espraia-se em todo o seu horror. E o pior ainda pode suceder.

d) por fim, o Governo e o SNS andam supostamente preocupados com um novo surto de covid-19 no Inverno. Podem e devem pensar nisso, mas temo que, se tivermos temperaturas acima de 35 graus durante muitos dias seguidos neste Verão, vamos assistir, muito antes disso, a uma hecatombe jamais vista em Portugal. Tudo por causa do medo, da ânsia, do desacompanhamento físico e emocional dos mais idosos e vulneráveis, do adiamento de consultas, diagnósticos, exames e cirurgias, do tempo quente, e sobretudo por causa de um SNS e de um Governo incapazes de ver a política sanitária sem as deturpadas “lentes da covid”. No fim, culparão eles, o SARS-CoV-2, que pode ser microscópico mas tem as costas largas. Podem sair ilibados; mas as mortes, essas, as desnecessárias, as excessivas, essas ninguém as vai “lavar”.

Nota 1: Para a elaboração dos gráficos usaram-se os dados do SICO da DGS (https://evm.min-saude.pt/#shiny-tab-a_total), os dados dos boletins diários da DGS (desde Março até hoje, vd. aqui: https://covid19.min-saude.pt/relatorio-de-situacao/). Para atenuar variações bruscas diárias utilizou-se a média móvel de cinco dias tanto para a mortalidade total diária de 2020 como para a média (2009-2019) e também para a mortalidade por covid-19. O excesso (ou redução favorável) foi calculado diariamente, subtraindo o valor de 2020 à média do período 2009-2019. Note-se que este exercício deve ser visto sobretudo como indicador de variação na evolução da mortalidade ao longo de 2020. Sendo certo que não se usaram intervalos de confiança (que poderiam atenuar ou agravar a evolução, dependendo de se olhar para o limite superior ou inferior do intervalo), também não se considerou (por não ter acesso aos dados) a redução da mortalidade por outras doenças infecciosas do foro respiratório (observou-se sim uma forte redução de episódios deste tipo de doenças, como pneumonias e bronquites, desde Março, em virtude do distanciamento social, o que terá causado uma redução da mortalidade por esta via).


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