Mão amiga enviou-me o relatório com 16 páginas do IPMA sobre a meteorologia em Julho, aconselhando-me a ver, pelo menos, as duas primeiras. Se seguisse o conselho, ficaria com a ideia de que afinal foi o tempo quente e seco (o mauzão) que causou uma mortandade no mês de Julho. Pois, mas por mim, ou leio os relatórios, e formo uma opinião, ou não leio e não formo.
Primeiro, quando olhamos para valores médios das temperaturas (mínima, média e máxima), efectivamente Julho foi bastante quente, sobretudo quando comparamos com as últimas três décadas do século XX, mas não tanto com as dos anos do presente século (hélas, o aquecimento global).Porém, como todos sabem, por certo, o nosso país tem um clima muitíssimo variado para país tão pequeno, além de ter uma concentração populacional nos distritos do litoral.
Ora, conforme se pode observar no relatório do IPMA, as ondas de calor em Julho fizeram-se sentir sobretudo nos distritos do interior, menos populosos. O único distrito mais populoso, com uma onda de calor de 10 dias (9-18 de Julho). Lisboa, por exemplo, não registou qualquer onda de calor. Os extremos da temperatura foram, por norma, atingidos no dia 17 de Julho, aliás, o único em que o Índice Ícaro (do INSA), sobre o qual escrevi ontem, indicava risco de excesso de mortalidade.
Lendo o relatório, e verificando ausência de onda de calor no distrito de Lisboa e presença de onda de calor entre 9 e 18 de Julho no distrito do Braga, fui ver como variou a mortalidade diária nestas duas regiões ao longo do mês. Podem observar os resultados nos dois gráficos, tendo aqui uma síntese:
Distrito de Lisboa (sem onda de calor)
Mortalidade média diária (2014-2019): 50,5 óbitos
Mortalidade média diária (Julho 2020): 66,6 óbitos
Dias sem onda de calor: 31
Dias com onda de calor: 0
Mortalidade média diária na onda de calor: (não aplicável)
Excesso de óbitos em Julho de 2020: 497 (+ 31,7%)
Distrito de Braga
Mortalidade média diária (2014-2019): 14,8 óbitos
Mortalidade média diária (Julho 2020): 21,2 óbitos
Dias sem onda de calor: 21
Dias com onda de calor: 10
Mortalidade média diária na onda de calor: 22,4 óbitos
Mortalidade média diária fora da onda de calor: 20,7 óbitos
Excesso de óbitos em Julho de 2020: 201 (+ 44,0%)
Excesso de óbitos nos 10 dias com onda de calor: 77 (+51,9%)
Excesso de óbitos nos 21 dias sem onda de calor: 124 (+40,1%)
Donde se conclui que no distrito de Lisboa, apesar da não existência de onda de calor, houve um excesso de quase 32% da mortalidade. No caso de Braga, sendo certo que nos 10 dias da onda de calor houve maior aumento da mortalidade em relação à média (51,9%), esse indicador foi também bastante elevado (40,1%) nos dias sem onda de calor, o que revela que apenas uma pequena parte do excesso de mortalidade terá tido essa onda de calor como causa.
Ou seja, continuo a defender que as temperaturas elevadas terão contribuído para o excesso de mortalidade, mas como factor de exacerbamento, o que se mostra bastante preocupante. De facto, se tivermos este Verão ondas de calor a atingir os distritos populosos, sobretudo do litoral, e em especial Lisboa e Portugal, a situação de Saúde Pública pode sim, neste caso, ser catastrófica. Portanto, não negando a existência de onda de calor durante o mês de Julho em parte substancial do território, tivemos mesmo assim a sorte de não atingir as zonas populosas. Porém, temo também que a onda de calor no interior sirva como argumento político para se encontrar um bode expiatório. Como mostrei em particular para os distritos de Lisboa e Braga, não é preciso onda de calor para haver um excesso de mortes. Era bom que o Governo debelasse o problema em vez de procurar bodes expiatórios que não fará ressuscitar ninguém.