Como tenho vindo aqui a defender, Portugal foi atingido por duas epidemias: 1) a covid; e 2) o colapso do SNS (adiamento de consultas, cirurgias, diagnósticos, etc), a par do medo e da falta de confiança das pessoas sobre a capacidade política de resposta à pandemia que as levaram a "fugir" dos hospitais.
Para a primeira epidemia (covid), não tendo sido Portugal um modelo (e.g., lares e transportes públicos), portou-se razoavelmente bem, evitando aquilo que, intimamente, se temia em Março e Abril: sermos iguais à Itália e Espanha).
Para a segunda epidemia, a desgraça tem sido completa, a começar pelo completíssimo alheamento das autoridade de Saúde (DGS) e a completíssima omissão do Ministério da Saúde em assumir que o excesso de mortes não-covid é insustentável pelos seus números absolutamente elevados. Vinco excepcionalmente os advérbios de modo. Esta é, tem sido e será, a minha maior das críticas: Suas Excelências estão borrifando-se completamente pelo excesso de mortes por outras causas; vai tudo para a covid, mesmo quase a lágrima de um secretário de Estado que é médico, e tinha, por isso, obrigação suplementar de ter outra postura perante um quadro tão negro nesta época estival.
Tenho tomado boa nota que as minhas estatísticas irritam já muita gente (preferem, talvez, o doce pingar das estatísticas da DGS, cujo seu Relatório de Situação já vai no número 164). Perante a ópera (bufa) da DGS, claro que as minhas estatísticas parecerão um concerto do Iggy Pop. Aliás, uma boa dúzia daqueles que considero amigos além-FB têm me mimoseado com críticas contundentes; muitos mais passaram a ignorar-me. E isto sem contabilizar os trools, mas para esses tenho sempre bom remédio. Curiosamente, nenhum ataca, provando, o rigor das estatísticas, até porque elas usam dados oficiais. Enfim, quanto a isto, paciência para todos. Continuo na minha: para se opinar tem de se estar munido de ferramentas. Os casos pessoais, o "achismo", a irritação porque "sim", não são a minha praia. Não estaria aqui a criticar o colapso do SNS se não houvesse um trágico output: as mortes excessivas que ultrapassam qualquer justificação esfarrapada (ou testes estatíticos).
Portanto,hoje, seguem dois gráficos que, enfim, são mais uma tentativa de "ilustrar" a nossa triste situação. Tentei caprichar na parte visual para melhor entendimento.
No primeiro gráfico, coloco a variação diária (média de 5 dias) da mortalidade ao longo de 2020 em relação à média (2009-2019). No entanto, para melhor leitura (e lembrança), essa variação está por blocos mensais, de modo a que as pessoas observem e recordem mais facilmente o que foi acontecendo desde Março.
O segundo gráfico distingue, também por mês, o contributo da covid-19 (mortes oficiais) e de outras causas para o excesso de mortalidade (i.e., mortes acima da média).
Sobretudo da leitura do segundo gráfico, advêm as minhas maiores críticas à gestão da pandemia da covid e da (não) resposta do SNS às outras doenças. Notem que, mesmo em Março e Abril, e quando a covid era verdadeiramente um problema de Saúde Pública (e também por então ainda se desconhecer o verdadeiro impacte), o excesso de mortes derivadas de outras causas foi sempre maior. Em Março, a covid representava 38% do excesso, em Abril subiu para os 45%. Portanto, já havia uma segunda epidemia desde Março.
Em Maio observou-se uma manutenção do peso relativo da covid (39%) e em Junho desceu significativamente (apenas 23%). Neste último mês era já evidente que o SARS-CoV-2 não representava do ponto de vista clínico um problema suficientemente grave que justificasse a manutenção da suspensão dos serviços do SNS para as outras maleitas.
Porém, a receita do Ministério da Saúde manteve-se: tudo para a covid; já não bastava achatar a curva, era necessário "matar" todos os vírus. Objectivo oficial implícito: zero casos positivos, zero mortes por covid.
Nesta obsessão oficial, os resultados estão à vista: em Junho, um mês geralmente de poucas mortes, continuou a ter um excesso de mortalidade muito elevado por outras causas; e em Julho atingiu níveis absurdos. Esse excesso de mortes foi geral, mesmo em regiões sem onda de calor (como Lisboa) ou nos dias sem onda de calor. Aliás, como também referi aqui, o Índice Ícaro do INSA apenas indicava o dia 17 de Julho como de risco.
Agosto, entretanto, vai pelo mesmo caminho, talvez não como a hecatombe de Julho, mas porque as temperaturas têm estado mais amenas. E andamos nisto. E as pessoas irritam-se porque apresento estatísticas e gráficos. E pior: dou opiniões, e até já prevejo (como fiz em na primeira quinzena de Julho) grandes desgraças para as semanas. Bem sei, nunca se gostou de Cassandras.