Um dos resultados mais funestos da pandemia tem sido a revelação de uma intolerância à opinião contrária, ao debate de ideias e à assumpção da inexistência de verdades absolutas. Desde o início da pandemia tornou-se claro que quem questionasse, quem duvidasse, quem tentasse perspectivar a pandemia, contextualizando-a e colocando-a num quadro mais global e integrado de políticas públicas (de saúde pública e outras), rapidamente era rotulado de negacionista, terraplanista, bolsonarista, trumpista, adepto da extrema-direita. Isto teve como condão que muita gente, e bem-dotadas de intelecto, evitasse opinar, estudar, analisar, preferindo seguir os demais, e atirando pedras como os demais às cada vez menos opiniões dissonantes. Assim se consolidou a narrativa, não dominante, antes unânime. E o unanimismo, imposto, é um dogma. E os dogmas, geralmente, são prejudiciais no imediato ou a prazo, se subsistirem com base na sua imposição, e não pela razão.
Em Portugal, quem “botou a cabeça” de fora rapidamente foi “decepado” pela imprensa e ostracizado pelas instituições. Jorge Torgal, um dos maiores especialistas de Saúde Pública, foi um deles. Maria Manuela Mota, directora do Instituto de Medicina Molecular, remeteu-se ao silêncio depois de ser “crucificada” por ter dito que o SARS-CoV-2 era um vírus “bonzinho” no sentido de que a sua letalidade e a incidência em termos de grupos etários não se equipara a outros vírus verdadeiramente mortíferos.
Depois seguiram-se os poucos médicos com coragem para se juntaram e criar o movimento Médicos pela Verdade, que têm sido alvo do maior enxovalho e perseguição mesmo pela Ordem dos Médicos por mero delito de opinião. E convém referir que dignísimos investigadores e comunicadores exemplares, David Marçal e Carlos Fiolhais, também bons conhecedores da História da Ciência, vieram defender que esses médicos deviam ter sido já proibidos de exercer medicina.
Depois tivemos ainda o lamentável caso do médico Fernando Nobre, também crucificado na praça pública, ainda mais às mãos de um “censor” ad-hoc, suposto comediante, de seu nome Rui Unas.
E, por fim, agora temos Raquel Varela, que nas últimas semanas tem colocado questões pertinentes, em artigos e textos diversos, mas que se poderia resumir no seguinte: vamos discutir a pandemia sob um olhar global, não apenas clínico, não apenas médico, não apenas de saúde individual nem colectiva, mas do ponto de vista global, de saúde pública, que, na verdade, é a saúde (em todas as acepções) da sociedade.
Um dos textos mais aplaudidos contra Raquel Varela – e aplaudidos efusivamente por pessoas cultíssimas e insuspeitas de não pensarem, como Francisco Louçã – é de uma enfermeira, de seu nome Carmen Garcia, que, tal como o inenarrável intensivista Gustavo Carona, tem linha aberta no jornal Público.
Um dos argumentos de Carmen Garcia, logo a abrir, vai no sentido do famoso “reductio ad Hitlerum”, usando uma frase apócrifa (ou seja, nunca dita) por Estaline: “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões uma estatística”. Colando assim, não inocentemente, a ideia de se ser um Estaline quando se quer debater Saúde Pública, onde indubitavelmente se tem de se munir de estatísticas de mortalidade (porque em Saúde Pública se faz um compromisso entre o menor dos males, já que se tem de assumir que haverá sempre mortes), o que inquina qualquer possibilidade de uma conversa séria e construtiva.
A enfermeira Carmen Garcia que mostra tanta comiseração pelas 1.620.823 mortes por covid (citação dela), também deveria mostrar similar comiseração por todas as 56.388.795 pessoas que, em todo o Mundo, terão já morrido por diversas causas ao longo do 2020.
A enfermeira Carmen Garcia, que mostra comiseração pela morte de jovens internados em “decúbito ventral” por covid (embora, até aos 20 anos foram dois em Portugal), devia ter mostrado também similar comiseração pelos jovens que em anos anteriores (e abaixo dos 20 anos) morreram por pneumonias e infecções afins em maior número.
A enfermeira Carmen Garcia, que critica a Suécia pelas falhas (assumidas pelas autoridades suecas) nos lares, também deveria saber que a situação dos lares portugueses só é melhor por uma razão: o Governo não fornece dados fidedignos nem nunca assumiu a gravidade da covid e sobretudo de outras afecções que estão a causar uma mortalidade sem precedentes nestas instituições. O Verão foi, aliás, uma hecatombe que merecia investigação do Ministério Público. O lar de Reguengos de Monsaraz foi a ponta do icebergue que se vislumbrou, porquanto muitos outros casos sucederam de mortes por uma simples razão: por abandono dos mais básicos cuidados médicos e humanos, incluindo dar água aos idosos.
Enfim, podia continuar a argumentar, mas tudo isto já me cansa, tudo isto me irrita, tudo isto é lamentável. A pandemia está a ser penosa sobretudo pelo lastro de intolerância e sobretudo pelas consequências para o nosso futuro como sociedade. Mais do que as mortes “secundárias” (por supressão de actos médicos e pelo medo exacerbado), esta pandemia está a mostrar o lado mais negro da Humanidade.