A imprensa continua a sua função de porta-estandarte do Governo para criminalizar a doença. Ou melhor, o doente. Por exemplo, o Público, pegando em Portugal e cinco outros países europeus, apurou e comparou a evolução da covid entre 1 de Dezembro e 4 de Janeiro, com base apenas nos novos casos positivos a partir dos testes PCR - testes esses em número variável, e que, repita-se, não são auditados por qualquer entidade independente, tal como nunca se avaliou a prevalência de falsos positivos.
Dos países seleccionados, apenas Portugal e o Reino Unido apresentam crescimentos desde as festividades natalícias. O povo lusitano e britânico, históricos aliados, irmanaram-se agora no suposto mau comportamento. Porém, nós, segundo o Público, ainda pior: registou-se uma redução de casos após o Natal e depois um significativo aumento após o Ano Novo. E isto apesar da circulação entre concelhos estar proibida e ter sido imposto o recolher obrigatório, vincou o Público.
Qual a conclusão que o justiceiro Público, de ponteiro na mão, quer subrepticiamente tirar, e que será tão do agrado do Governo? Que, obviamente, a subida de casos no período do Ano Novo não é culpa do Governo, que até tomou medidas, mas sim das pessoas, que prevaricaram, e a situação, só por causa delas, está de novo descontrolada.
Eis o estado em que nos encontramos. O Governo já tratou de desculpabilizar os transportes públicos. Lá não há infecções. O Governo já tratou de desculpabilizar as suas medidas obtusas que levam a aglomerações nos estabelecimentos comerciais aos fins de tarde e aos fins-de-semana. Não é nas bichas do supermercados nem nas filas do último take away aberto que alguém se contamina. Só há contaminações em casa. Só há contaminações se se beber um copo com amigos. Só no lazer e no descanso o vírus ataca. E sobretudo à noite e ao fim-de-semana. Ah! e esqueçam o que é Saúde Pública e gestão de risco e solidariedade social. Tudo tretas!
Em suma, com a ajudinha preciosa da imprensa (e o Público está a merecer cada cêntimo de publicidade institucional), o Governo português está agora a provar inequivocamente que a culpa da mortalidade excessiva da covid não é de quaisquer medidas obtusas nem do SARS-COV-2 ser um vírus sazonal de perigosidade relativa, mas das pessoas, só das pessoas, apenas do doente.
Eis o estado em que nos encontramos. O Governo jamais terá responsabilidades. Se não houver camas-covid para internamento, a culpa é dos doentes. Deixaram-se infectar. Pior: andaram na "boa-vai-ela" e contaminaram-se. E ainda mais: contaminaram outros. Se as camas-UCI entrarem em ruptura, a culpa nunca será do Governo, mas sim dos doentes, que ainda por cima caprichosamente pioraram só porque não usaram máscara, ou abriram uma janela ou o raio que os parta.
Bem-vindo ao Mundo Novo, ao Novo Normal. No futuro, para tudo, para qualquer outra doença, para qualquer outra maleita, o Governo vai manter hospitais abertos, mas pouco, talvez só de vez em quando, e em vez de tratar da saúde dos doentes, vai tratar de os inculpar. Se os hospitais não aguentarem a afluência, a culpa nunca será do Governo por não investir na Saúde; será dos doentes porque ficaram doentes. Se morrerem, a culpa é dos doentes; nunca do Governo.
É fumador? Não se queixe se tiver, mais tarde ou mais cedo, problemas respiratórios, um AVC ou um cancro. E se ralhar muito contra o Governo, só é tratado se pagar a conta. Ou então vai morrer longe. O melhor mesmo é morrer logo, de síncope. Até porque, se a defunção demorar, o Governo e a imprensa, como o Público, tratarão de amealhar provas e denunciar os tabagistas cancerosos pelo "crime" de ocupação ilegítima de recursos hospitalares; e estes serão justa e implacavelmente ostracizados pelo Povo, apedrejados talvez, porquanto a Sociedade do Mundo Novo não tem nada de pagar males de vícios alheios.
Teve um ataque cardíaco? Eh lá! Vamos já investigar o seu passado nutricional, inspeccionar, através da Autoridade Tributária, quantos quilogramas de sal e de doçaria foi adquirindo ao longo dos últimos anos. Acima de determinado limite, a vítima passará a criminosa, com nome exposto em pregão pela praça pública.
No limite, o Governo elaborará uma lista negra dos cidadãos de comportamento suspeito, aqueles que potencialmente serão responsabilizados se ficarem doentes.
Assim, toda a doença será culpa do doente. Toda a doença será criminalizada. O Governo português, a partir daí, passará a gerir um Admirável Mundo Novo. E todos os jornalistas serão condecorados com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. A Bem da Nação.