Muito cedo, nesta pandemia, e as publicações aqui e no meu blog servem de prova, fui manifestando, muito antes até de muitos médicos, a minha preocupação por a estratégia anti-covid apenas olhar para esta doença e não a enfrentar como um problema de Saúde Pública integrando-a no contexto global. Ou seja, as zero mortes por covid seriam uma utopia, e seria errado apostar todas as "fichas" para reduzir ao máximo das mortes por covid, sobretudo havendo o risco das vidas eventualmente poupadas acabarem sucumbindo de outras maleitas pelo colapso do SNS e pela falta de assistência médica para outras afecções.
Desde cedo, e sobretudo no Verão, já existiam indicadores preocupantes, sobretudo aquando da grande mortandade de Julho, sobre os efeitos dos desequilíbrios na assistência e acompanhamento médico aos mais idosos. A situação não se alterou ao longo dos meses, mesmo quando no Verão a covid deu descanso, e está agora a agravar-se para níveis alarmantes. E não se culpe a covid. Pelo contrário.
Pegando apenas na mortalidade dos maiores de 85 anos, o grupo mais vulnerável à covid MAS também muitíssimo vulnerável ao colapso do SNS (adiamento de consultas, diagnósticos, cirurgias, etc.), mostra-se tenebroso observar a evolução da mortalidade desde o Verão para o ano de 2020 quando confrontado com os anos anteriores (2014 a 2019). Por exemplo, no dia 30 de Junho, mesmo depois da primeira vaga da covid, a taxa de mortalidade (por 1.000 habitantes desse grupo etário) em 2020 era o terceiro mais baixo desde 2014, sendo os valores os seguintes:
2020 - 83,5 óbitos por 1.000 hab.
2019 - 84,1 óbitos por 1.000 hab.
2018 - 88,6 óbitos por 1.000 hab.
2017 - 85,6 óbitos por 1.000 hab.
2016 - 83,2 óbitos por 1.000 hab.
2015 - 93,0 óbitos por 1.000 hab.
2014 - 82,5 óbitos por 1.000 hab.
E isto, repita-se, após a primeira vaga da covid, Reparem no valor de 2015, em grande destaque, muito por via do período gripal nos primeiros meses do ano (sem covid, claro).
O grande problema de Saúde Pública este ano manifestou-se não pela resposta política à covid, mas sim pela opção política de secundarizar todas as outras doenças e até "esfregar as mãos de satisfação" (figura de estilo) por as pessoas terem "fugido" das urgências por medo de infecção. Ora, juntando o que sucedeu no Verão com a suspensão do SNS para tudo o que não era covid, conseguiu-se como resultado um aumento da mortalidade dos mais idosos e "fomentou" uma maior vulnerabilidade para o Inverno que se avizinha.
Uma prova evidente disso obtém-se através da observação dos diferentes gráficos que apresento em baixo (sempre confrontando a evolução da taxa de mortalidade acumulada desde 1 de Janeiro até 9 de Dezembro). O ano de 2020 tornou-se para os mais idosos, enfim, o mais mortífero em termos absolutos (número total de óbitos) e agora também relativos (taxa de mortalidade acumulada) não apenas pelo que está a suceder desde Novembro, mas também pelo que se fez e não fez no Verão. E não se culpe apenas a covid, repito, até porque, neste momento, as infecções respiratórias (pneumonias e afins) praticamente terão desparecido e, portanto, deixaram de "criar" mortos.
Neste momento, estou particularmente pessimista sobre o Inverno, não apenas por agora ser evidente a existência tanto de um excesso de mortalidade absoluta como relativa. Na verdade, a covid até pode diminuir, mas o "perfil" de 2020 (e o lastro das opções políticas) evidenciam problemas "estruturais" criados por uma conjuntura politica e clinica mal conduzidas.
Um dos grandes dramas da estratégia portuguesa foi, na verdade, numa primeira linha, os epidemiologistas terem convencido os políticos de a covid ser o único problema de Saúde Pública. Numa segunda linha por os médicos de Saúde Pública não terem gritado "alto e pára o baile", tendo entrado afinal no baile. E, numa linha contínua, por a comunicção social ter fomentado a manutenção do dito baile por comodismo, benefício, negócio e ignorância, tudo misturado. No meio disto, os políticos nada mais fizeram que animar o baile.
E, quando falo em baile, estou referir-me à "silenciosa carnificina de velhos", sobretudo dos que não morrem por covid.
Fonte: SICO