Anteontem escrevi um post onde lamentava a indiferença com que as gripes são olhadas pela sociedade, por todos nós, por se julgar ser problema expectável e controlado. E que, por isso, qualquer comparação com a covid-19, argumentaram muitos (alguns rotulando-me com epítetos pouco abonatórios para a minha inteligência), não era ajustada.
Ora, primeiro, não foi minha intenção principal comparar a mortalidade da covid-19 com a dos surtos gripais, pese embora estudos indiquem que, a nível, mundial causam uma mortalidade média de 389 mil pessoas (vd. link em baixo). Na verdade, foi minha intenção principal chamar a atenção para o facto de, ao desleixarmos a gravidade de uma doença recorrente, mas que está longe de ser controlada e de efeitos expectáveis, não apenas “deixamos” morrer muitos (e muitos idosos) como ficamos assim menos preparados para enfrentar (como agora está à vista) um vírus (SARS-CoV-2), que é efectivamente mais perigoso do que os vírus da gripe (geralmente, Influenza).
Mas volto à liça para mostrar, aos mais cépticos, que a “gripezinha” não é uma pêra doce. Nem sequer de efeitos expectáveis, mesmo se sabemos que chega quase sempre no Inverno (analisarei isso mais tarde). Se olharmos para a variação da mortalidade em Portugal ao longo de um qualquer ano, verifica-se que, grosso modo, há uma “base de óbitos”, chamemos assim, que ronda as 260 mortes por dia (entre Junho e Outubro a média diária de óbitos situa-se entre os 250 e 270). Esta “base” corresponde, obviamente, às mortes pelas mais diversas causas que, por regra, provocam estragos em qualquer época do ano. Sobretudo nos meses de Inverno e uma parte do Outono e Primavera, o factor que mais determina o aumento nos números da mortalidade são a gripe, e em alguns contextos por “acumulação” o frio (no Verão também as ondas de calor, mas de forma mais esporádica). E aí, acreditem, as gripes podem ser um flagelo (muito diferenciado, e mais ou menos significativo em função dos anos), quase sempre imprevisível no número de vítimas e na amplitude temporal dos seus efeitos. Mas é previsível num aspecto comum: aniquilam sobretudo os mais idosos (idade superior a 75 anos), tal como a covid-19.
No primeiro gráfico (G1) que apresento hoje podem visualizar a evolução da mortalidade durante um dos surtos gripais mais intensos dos últimos nos últimos anos (2016-2017), que nem foi o mais mortífero, mas que se salienta pelo pico elevadíssimo no início de Janeiro (578 óbitos no dia 2). No período de Outubro de 2016 a 15 de Abril de 2017 registou-se uma média diária de 337 óbitos (mais de 70 óbitos por dia acima do habitual nos outros meses), atingindo, contudo, uma média diária de 409 óbitos nos meses de Dezembro de 2016 e Janeiro de 2017 (quase 150 óbitos a mais do que o habitual nos meses mais avançados da Primavera e no Verão). Note-se que durante essa época gripal (Outubro-Maio) foi estimado pelo INSA um acréscimo de 4467 óbitos devido a este surto gripal. Saliente-se, porém, que estes valores são estimativas que entram também em linha de conta valores expectáveis, com intervalos de confiança e períodos gripais anteriores.
No segundo gráfico (G2) mostro como evoluiu a mortalidade nas pessoas com mais de 75 anos a partir de 1 de Outubro de 2016, que começou a aumentar a partir da segunda semana de Outubro, ultrapassando aí os 200 óbitos por dia. Até ao fim da primeira quinzena de Dezembro desse ano, a mortalidade neste grupo etário subiu ainda mais, mas de forma mais ou menos errática, para níveis próximos de 250 óbitos diários. A partir dessa data nota-se que o surto gripal começou então a fazer enormes estragos. Com efeito, entre 22 de Dezembro de 2016 e 1 de Fevereiro (42 dias) registaram-se 33 dias com mais de 300 óbitos entre a população com idade superior a 75 anos. No dia 2 de Janeiro chegou aos 436 óbitos, mais 258 óbitos do que no dia 1 de Outubro, no início da série temporal em análise. É uma diferença muito significativa para uma doença tão menosprezada.
Note-se também neste segundo gráfico (G2), a variação dos óbitos na faixa etária dos menores de 75 anos: não acompanha a variação nos óbitos dos mais idosos, confirmando-se assim que geralmente as gripes comuns actuam como a covid-19, i.e., são especialmente mortíferas na população com mais de 75 anos. E muitíssimo mais. Aliás, para se destacar a vulnerabilidade deste grupo etário também à gripe, observe-se o terceiro gráfico (G3) onde se apresenta, para a mesma série temporal respeitante ao período gripal de 2016-2017, a relação entre óbitos da população com mais e com menos de 75 anos. Se antes do surto gripal esta relação rondava os 2 (i.e, por cada três óbitos, dois eram de pessoas com mais de 75 anos), quando a gripe começou a atingir maior letalidade a relação subiu sistematicamente, entre finais de Dezembro e primeira quinzena de Fevereiro, para valores acima de 3 (i.e., por cada quatro óbitos, três foram de pessoas de pessoas com mais de 75 anos).
Por fim, e fazendo isto de uma forma muito simplista – interessa-me aqui, agora, transmitir uma ordem de grandeza que reflicta a realidade –, se assumirmos que, sem gripe (associada a condições mais adversas típicas do Inverno), será expectável uma média diária de 200 óbitos no grupo etário com mais de 75 anos, então observe-se a área inferior limitada pela linha vermelha do gráfico 4. Mostra-se aí, pelo somatório, o número de óbitos causados exclusivamente pela gripe nesse período. Fazendo as contas, entre 1 de Dezembro de 2016 e 31 de Janeiro de 2017 contabilizam-se mais 6.330 óbitos de pessoas com mais de 75 anos (i.e, somando todos os óbitos acima dos 200 por dia). De uma forma simplista, significa que, sem qualquer gripe naquele período, haveria cerca de 6.330 idosos com mais de 75 anos que teriam continuado vivos.
Por tudo isto, e em tom de conclusão, penso ter mostrado aqui que a doce gripe afinal sempre foi, e continuará a ser, um flagelo se se achar que não se pode comparar as gripes à covid-19. Um flagelo é sempre um flagelo, mesmo se houver um flagelo maior. Menosprezar um flagelo porque afinal apareceu um flagelo maior é um erro grave [faz-me lembrar um pouco a situação dos incêndios florestais: quando começamos a pensar que afinal não era um flagelo termos incêndios de 5 mil hectares, acabámos por “reunir” condições para termos incêndios de 50 mil hectares…].
Por tudo isto, sendo certo que não foi o menosprezo às gripes que nos trouxe a covid-19, parece-me contudo uma evidência que se tivéssemos levado (aqui e em quase todo o Mundo) as gripes como um problema muito sério talvez tivessem sido salvas muito mais pessoas e, por outro lado, possuiríamos agora mais mecanismos, melhores estratégias, mais e melhores equipamentos e pessoal médico treinado e capaz para “atacar” pandemias como as da covid-19. A forma como temos abordado as gripes reflecte-se, e não pensem que não, na forma como podemos ser mais ou menos afectados pelo surgimento de um novo vírus. As fatalidades também somos nós que ajudamos a criar.