segunda-feira, 20 de abril de 2020

DO MILAGRE DE NOSSA SENHORA DA COVID

Nas minhas pesquisas, desta vez predispus-me a tentar saber se existia uma relação entre os gastos públicos correntes para a Saúde de um conjunto de 31 países europeus (EU-27, mais Reino Unido, Suíça, Noruega e Islândia), em dólares per capita (em 2017, em paridade de poder de comora) e o seu desempenho na luta contra o SARS-CoV-2, medida em termos de óbitos por covid por milhão de habitantes.
Bom, nem sempre se chega a uma conclusão linear, mas obtém-se algumas observações interessantes: não há relação evidente entre aquilo que os Estados gastam de forma corrente e os efeitos da pandemia, porquanto há um grupo de países que gasta pouco e não estão a sofrer, em princípio, elevada mortalidade por covid; há um grupo de países que gastam muito e também não sofrem; e há terceiro grupo intermédio destes dois (onde pontifica a Bélgica, Itália e Espanha) com as situações mais complicadas.
Porém, o que o gráfico revela é que só por uma questão de fé se pode dizer que Portugal esteja numa situação excepcionalmente boa no quadro deste grupo de países europeus em relação à covid: figura na 11ª posição em termos de mortalidade per capita. Há alguns países que gastam mais e estão em pior situação, mas também há um grupo importante que gasta menos e está em melhor situação.
Note-se que esta análise não tem em consideração, por se ignorar para os outros países, o acréscimo de mortalidade não explicada pela covid-19.
Este gráfico revela também outro pormenor mais interessante do estado da nossa política de saúde em tempos normais: neste lote de 31 países, Portugal está na 20º posição em termos de gastos públicos per capita destinados à saúde (para o ano de 2017). Não é nada famoso. Aliás, para se ter uma melhor percepção das diferenças em termos de montante (dólares per capita), coloco um gráfico de barras para se mostrar as diferenças entre os diversos países.
Diga-se que as diferenças não advêm de um longínquo passado histórico. Nas últimas duas décadas, e particularmente a partir de 2010, a fosso de Portugal em relação aos países mais desenvolvidos nesta área tem sido ainda mais cavado, conforme podem observar no terceiro gráfico (crescimento de base 100 a partir do ano 2000).
Em suma, pode sempre julgar-se, por uma questão de fé, que o nossos SNS está a dar conta do recado em relação à covid e que muito bom ou suficiente com o dinheiro que lhe é disponibilizado pelo Estado, e que os países mais desenvolvidos são uns gastadores ineficientes. Pode sempre pensar-se nisto, e rezar depois à Nossa Senhora de Fátima em tempos de pandemia, aguardando um milagre. E rezar também em tempos ditos normais.
Enfim, bem gostaria que esta pandemia nos trouxesse, pelo menos, a capacidade de reivindicar um melhor SNS. E isso não é exigir mais do pessoal médico nem exigir mais trabalho, é exigir das autoridades de Saúde e políticos que invistam mais no SNS, criando-lhe condições para estarem melhor preparados em todos os tempos. Pela nossa saúde. Física e económica.




domingo, 19 de abril de 2020

DO REAL DESEMPENHO DO SNS

Muitos têm andado a elogiar o nosso SNS, mas a realidade nem sempre (quase nunca, neste caso), é aquela que parece. Mas, pensando bem, anos e anos de desinvestimento na Saúde, em simultâneo com o envelhecimento da população, não podia dar milagres. Aquilo que não era ideal antes da covid-19, não poderia agora ser melhor no meio de uma pandemia.
Para ter uma realista percepção dos efeitos do novo coronavírus em Portugal, não basta andar, por isso, a somar o número de mortes por covid-19. Aliás, na verdade, deve-se subtrair. Ou seja, como uma parte muito substancial do SNS está concentrada no combate à covid, será necessário apurar se o "puxar do cobertor" para o ataque à covid deixou destapadas áreas vitais na assistência médica à população.
Um dos indicadores fulcrais para apurar este efeito é, obviamente, a mortalidade total sem incluir os óbitos por covid (687 entre 15 de Abril e 17 de Abril) e comparar com a situação média da última década. Para evitar críticas dos "estatísticos de serviço", predispus-me também calcular o intervalo de confiança.
O gráfico em baixo mostra a variação da mortalidade excluindo as causadas por covid (2020sc) ao longo do período em análise (15mar-17abr), observando-se que em grande parte dos dias se registou valores muito acima da média e mesmo do máximo do intervalo de confiança (a 95%).
A mortalidade total no período em análise em 2020 foi de 11.749 óbitos, dos quais 687 por covid. Significa assim que as mortes excluindo covid totalizaram 11.062. A média dos últimos 10 anos, para o período homólogo, foi de 10.383, com um intervalo de confiança (a 95%) entre 10,116 e 10.650 óbitos.
Nessa linha – e repito, excluindo as mortes por covid -, estimo, para o período compreendido entre 15 de Março e 17 de Abril deste ano, um excedente de mortalidade de 679 óbitos, com um intervalo de confiança situado entre 411 e 946 óbitos.
Significa isto que o SNS está longe de dar uma adequada resposta durante a pandemia de covid-19, pois o SNS não é só luta contra a covid. Para os mais distraídos, convém relembrar que a covid não é a única doença do país nem a única causa de morte...
Na verdade, esta análise confirma que a mortalidade acrescida, não explicada pela covid, está actualmente a atingir proporções mais graves do que a própria covid. Em termos mais claros, direi que o SNS pode estar a evitar algumas mortes por covid, mas não está a conseguir salvar muitas mais que, em situação normal, conseguia, mesmo com as suas habituais deficiências. Portanto, não se está a sair agora, nas actuais circunstâncias, nada bem. Mesmo nada. O saldo está a ser francamente negativo, nesse aspecto.
Em suma, julgo ser urgente que as autoridades de Saúde, e o Governo em particular, analisem com detalhe o que, actualmente,está a falhar no SNS. Caso contrário, podemos estar a celebrar um desempenho bom na covid, enquanto na sombra se regista um descalabro noutros sectores da assistência médica que resultam (e estão inequivocamente a resultar) num acréscimo inaceitável de mortes evitáveis.


sábado, 18 de abril de 2020

DO DEBATE IMPOSSÍVEL, MAS, PORRA!, OLHEMOS PARA AS GRIPES

Há quem alegue que o impacte da covid-19 não se pode comparar com a gripe, e eu concordo. Efectivamente, jamais se pode fazer uma discussão contrafactual, na medida que o SARS-CoV-2 nunca teve a "liberdade" dos vírus da gripe.
Mas se não se pode saber jamais o que teria sucedido sem confinamento, sabe-se, porém, o que faz o vírus influenza e seus "comparsas", que matam a eito, forte e feio, sem que as autoridades de saúde percam tempo a fazer viseiras com o nome do ministro na testa.
Numa muito breve análise, fui ver como evoluiu a mortalidade no surto gripal de 2016-2017 - que decorreu de Outubro de 2016 (S1) até Abril de 2017 (S20) - registada nas cidades de Lisboa e e do Porto, que como se sabe tem uma população muito envelhecida. O período em análise corresponde ao período de vigilância do INSA, que faz uns relatórios semanais, bons tecnicamente, mas que poucos entendem e ninguém consulta. Os dados da mortalidade são os da DGS, com detalhe semanal por concelho (não existe para este ano desde Fevereiro, não sei porquê).
Pois bem, ou mal, em Lisboa, no período em análise, até finais de Novembro, a mortalidade semanal não ultrapassou os 140 óbitos; depois em Dezembro disparou, atigindo quase 200 óbitos na última semana do ano de 2016. Só retoma abaixo dos 140 óbitos na semana 7, ou seja, já em Fevereiro.
Se considerarmos os 120 óbitos por semana a mortalidade basal na capital (ou seja, mortes que ocorreriam sem gripe, ou seja, a ordem de grandeza em Outubro e Maio), contabilizam-se 502 mortes pela simples gripe apenas - repito, apenas - em Lisboa entre a semana 50 (início de Dezembro de 2016) e a semana 6 (meados de Fevereiro de 2017).
No Porto tivemos situação semelhante: na última semana de Novembro registaram-se 47 óbitos, tendo-se atingido um pico de 97 óbitos na primeira semana de 2017.
Se considerar, nos mesmos pressupostos de Lisboa, que a mortalidade basal no Porto é de 50 óbitos por semana, então tivemos em 9 semanas (entre a semana 50 de 2016 e a semana 6 de 2017) uma mortalidade de 230 óbitos causados pela gripe.
Obviamente que esta é uma análise superficial - e que necessitaria de ter em consideração outros factores -, mas tem-se aqui uma ordem de grandeza para reflexão. Como digo, se porventura olhassemos para as gripes com um olhar mais cuidadoso, porventura não teríamos entrado em pânico com a covid-19, desencadeando medidas que se ignora se foram as adequadas do ponto de vista de saúde pública, mas que se sabe terão repercusões graves em termos socio-económicos.
Podia aqui indicar outros casos, em municípios mais pequenos, onde as variações relativas são ainda maiores entre Outubro e Dezembro-Janeiro (pico da gripe), mas fico-me por estes casos.



DO BREVE ENSAIO SOBRE O PÂNICO (EM TERRAS DE ESPANHA)

Os nossos vizinhos têm 2,86 milhões de pessoas com mais de 80 anos (dados do seu Instituto Nacional de Estatística). Destes, 6.775 morreram por covid-19 (dados do seu Ministério da Saúde). Isto significa que, mesmo na sua população de maior risco, estamos a falar em 0,24% de mortalidade total (para essa faixa etária). Porém, como tudo é apresentado como taxa de letalidade (visto pelo número de casos positivos, mesmo não se sabendo qual o grau efectivo de contaminação), apontando assim para níveis de 25%, tudo parece muitíssimo pior do que é.

VAMOS LÁ TODOS CONTINUAR A PANICAR

Portanto, estamos a viver sob omnipresente pânico por causa de uma doença que, em APENAS UM MÊS, dizimou 0,0072% dos homens portugueses e 0,0062% das mulheres portuguesas. E que, pânico geral sobre os "cabeças grisalhas", chacinou já 0,0849% dos homens com mais de 80 anos e 0,0589% das mulheres da mesma faixa etária. E, portanto, estamos a comparar isto à Peste Negra e à pneumónica, porque também é evidente que causa estragos inimagináveis na população menos idosa, porquanto temos em Portugal níveis de defunção de 0,0004% da população masculina com idade entre os 40 e 49 anos, e de 0,0006% da população feminina da mesma faixa etária...Ah, e que causou também a morte de 0,0000% da população com menos de 40 anos!


DA RACIONALIDADE EM TEMPOS DE PÂNICO

Costumo variar entre duas "fases": achar que a morte é uma parte irreal da vida; e achar que a morte rege-se, ao longo da vida, por um processo probabilístico. É a segunda fase que me faz não enlouquecer, e viver a vida enquanto a lei das probabilidade, que joga sempre contra nós à medida que envelhecemos, não me fizer encontrar com a morte.
Isto a pretexto do pânico em redor da covid-19. No último mês e meio temos sido "bombardeados" com números de mortes por covid-19, como se fôssemos todos morrer. Efectivamente, vamos todos morrer, mas, pela lei das probabilidades, esse dia será diferente para cada grupo etário.
Com efeito, parece que, por estranho que pareça, e de repente, a sociedade chegou à conclusão que há "grupos de risco", i.e., pessoas que podem morrer por covid-19 mais do que outras. A chatice disto não é suceder com a covid-19; é sempre ter sido assim com outras doenças e afecções. E, probabilisticamente, assim continuará a ser.
Para ser racional, vejamos números, para saber se devemos estar com medo ou em pânico (são conceitos diferentes). Por exemplo, vamos colocar aqui as probabilidades diárias de mortes que se verificaram em Janeiro deste ano por grupo etário em Portugal, portanto, antes da pandemia da covid-19, mas estando então em "vigor" a habitual gripe sazonal (pouco intensa este ano):
Mais de 75 anos - 25,6 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário
Entre 65 e 74 anos - 4,7 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário
Entre 55 e 64 anos - 2,6 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário
Menores de 55 anos - 0,32 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário

Ou seja, o risco de morte de um idoso com mais de 75 anos foi, em Janeiro, quase 100 vezes (98,4 x) superior à de uma pessoa com menos de 55 anos. Portanto, parece-me que é lícito admitir que um idoso integra, e sobretudo no Inverno, um grupo de risco.
Vejamos agora, como estamos durante a actual pandemia, com os dados da primeira quinzena de Abril:
Mais de 75 anos - 24,1 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário - REDUZIU 6% EM RELAÇÃO A JANEIRO
Entre 65 e 74 anos - 4,2 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário - REDUZIU 11% EM RELAÇÃO A JANEIRO
Entre 55 e 64 anos - 2,3 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário - REDUZIU 12% EM RELAÇÃO A JANEIRO
Menores de 55 anos - 0,28 mortes por cada 100.000 pessoas desse grupo etário - REDUZIU 13% EM RELAÇÃO A JANEIRO

Apesar de tudo, o risco de morte por covid (em Abril) está mais baixo do que com a gripe sazonal (em Janeiro) para TODOS os grupos etários.
Especialmente no caso do grupo etário dos menores de 55 anos, a probabilidade de morte é, tanto com a gripe como agora com a covid-19, extremamente baixa. Aliás, seguindo a tendência de um ano médio.

Mais tarde irei fazer aqui mais umas análises incidindo sobre a população com menos de 55 anos, que constitui uma parte fundamental da população activa.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

DO SOL QUE ESCONDE A NUVEM


Em Junho de 2017, mais precisamente na noite do dia 17, um trágico incêndio em Pedrógão Grande matou quase 70 pessoas (óbitos registados a 18). O mediatismo deste drama «ofuscou», porém, outro drama completamente silencioso,mas mais mortífero: uma onda de calor, então em curso, viria a matar cerca de 400 pessoas em seis dias (entre os dia 18 e 23), porque o nosso SNS nunca soube proteger as pessoas vulneráveis em situações deste género.

Isto a pretexto da actual situação: espera-se que pelo facto de não se estar a repetir em Portugal a situação espanhola e italiana com a covid-19, não se venha a concluir que o SNS está muito bem e se recomenda. Não! Pelo contrário: desinvestimos na Saúde na última década, e temos indicadores de saúde muito fracos. E que exigem francas melhorias.


DO FIM DA QUARENTENA (para já!)

Tinha prometido ir apresentando análises diárias sobre a mortalidade e o impacte da covid-19 em função da faixa etária (mostrei já a primeira aqui no FB, para os mais idosos), mas não aguento antecipar uma "revelação", agora que terminei os cálculos para as outras: desde que a covid-19 começou a matar em Portugal (16 de Março), as pessoas com menos de 55 anos aumentaram a probabilidade de se manterem vivas. A média de óbitos (2014-2019) nesta faixa etária é de 633, mas este ano ficou-se pelos 550. Na primeira quinzena de Março a diminuição da taxa de mortalidade global para esta faixa etária, em relação à média, foi de 11,7%; na primeira quinzena de Abril a queda ainda foi maior (-14,6%).
Conclusão: se tem menos de 55 anos, NÃO trabalhar faz bem à saúde. Já a Economia, não diz o mesmo.
P.S. Os cálculos apresentarei amanhã, depois de mostrar também as conclusões para os grupos etários dos 65-74 anos e 55-64 anos. Para os maiores de 75 anos publiquei esta tarde.

DO IMPACTE DA COVID NOS MAIORES DE 75 ANOS (primeira análise etária)

Nos próximos dias vou aqui colocar análises desagregadas da mortalidade (e sobretudo da taxa de mortalidade, que tem em conta a população de cada grupo etário) desde o início do ano para cada faixa etária. O período em análise vai de 1 de Janeiro a 15 de Abril, sendo confrontado o ano em curso com a média dos últimos seis anos (2014-2019). Foi calculado o intervalo de confiança a 95% para encontrar os valores mínimos e máximos expectáveis, de modo a saber como está a decorrer onível de mortalidade ao longo de 2020 e sobretudo como decorreu o primeiro mês desde que foi anunciada a primeira morte por covid-19 (16 de Março). A taxa diária média de mortalidade foi calculada em função da estimativa da população em 2018 para cada faixa etária, de acordo com os dados do INE.
Começo hoje com a faixa etária dos maiores de 75 anos, que foi, e continua a ser, a mais afectada pela covid-19. Note-se que para a faixa etária dos maiores de 75 anos, o INE estimou uma população de 1.266.775 pessoas. Como podem observar no gráfico, ainda na segunda semana de Março a mortalidade começou a aumentar significativamente, com registo de valores bastante acima do máximo do intervalo de confiança. Observa-se, contudo, um ligeiro decréscimo na segunda semana de Abril.
Apesar do acréscimo a partir de Março, os níveis de mortalidade, mesmo em Abril, estão abaixo dos observados em Janeiro. Ou seja, proventura devido ao confinamento, a mortalidade causada nesta faixa etária pela covid-19 (e por outras doenças) foi, até agora, inferior à causada pelo último surto gripal (e por outras doenças), que, como se sabe, foi pouco intensa.
Obviamente, convém que as comparações sejam feitas com o período homólogo (a mortalidade em Janeiro é sempre muito superior à de Abril). E, nessa medida, a mortalidade na segunda quinzena de Março e na primeira quinzena de Abril, a taxa de mortalidade para os maiores de 75 anos foi bastante mais elevada em relação à média do período homólogo. No caso da segunda quinzena de Março, o aumento da taxa de mortalidade foi de 15,4% e na primeira quinzena de Abril foi de 21,3%.
Em termos absolutos, observou-se um acréscimo de mortalidade na segunda quinzena de Março para este grupo etário de 546 pessoas,subindo para 691 pessoas na primeira quinzena de Abril. No entanto, como os meses de Janeiro e Fevereiro, bem como a primeira quinzena de Março deste ano, foram bastante menos mortíferos do que a média, no total o ano de 2020 regista apenas, para este grupo etário, um excesso de 31 mortes.
Em suma, não estando aqui em análise uma comparação de cenários (i.e., confinamento vs. não confinamento, porque este último é contrafactual), a covid-19, mesmo estando a ser muito mais letal para a faixa dos maiores de 75 anos, não está a atingir em Portugal proporções calamitosas para os mais idosos.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

DOS EFEITOS DA PÁSCOA

Acredito que, durante a Páscoa, houve muito boa gente que, mesmo não saindo dos seus concelhos, andou a festejar e a conviver com familiares. Entretanto, esta sexta-feira faz 5 dias desde esse fim-de-semana, ou seja, o período médio de incubação da covid-19. Se o número de infectados nos próximos dois ou três dias não aumentar muito, será um bom sinal para o fim da quarentena que se deseja: Se subir muito, é mau sinal.

DA BUSCA POR BOAS NOTÍCIAS

Embora ao longo das últimas semanas tenha variado, nas minhas análises à covid, entre o pessimismo, o cepticismo, a desconfiança e a expectativa, tenho sempre procurado encontrar alguns sinais que transmitam (a começar por mim, ora bem!) alguma esperança de regresso à "normalidade".


Um aspecto que me preocupa bastante não é só o acumular de vítimas da covid-19 (que se deve lamentar tanto como as vítimas da gripe e de outras doenças), mas o eventual colapso do sistema nacional de saúde. Desde a terceira semana de Março tenho alertado para esssa situação, porquanto o excedente de mortes que se começou a verificar a partir da segunda semana daquele mês não se justificava apenas pelo número de mortes da covid.

Ora, esta tarde fiz uma nova análise, mais cuidadosa do ponto de vista estatístico (em vez de usar a média da última década, calculei o mínimo e o máximo dentro do intervalo de confiança a 95% desde 1 de Janeiro), para aferir como estamos actualmente.

Como podem observar no gráfico, com dados entre 1 de Janeiro e 14 de Abril, ainda nos encontramos bem acima dos valores expectáveis da mortalidade para esta época do ano, acima do valor máximo do intervalo de confiança para a média, mas com uma tendência decrescente, se se usar como linha de tendência a média de 7 dias (linha azul). Essa ligeira aproximação aos valores expectáveis para esta época do ano (e que são muito mais baixos do que em Janeiro), e como a mortalidade diária por covid-19 tem estado a estagnar, pode significar que as tais mortes colaterais pelo "efeito covid" estão a diminuir significativamente.

Em suma, podemos estar ainda bastante longe de resolver o problema da covid, mas pelo menos estamos a conseguir que o sistema de resposta para acudir a outras emergências (AVC, ataques cardíacos e outras doenças súbitas) se normalize. E isso já não é nada mau nos tempos que correm, pois precisamos de um SNS "sadio".



DO LUIS SEPÚLVEDA

Há longínquos 22 anos, em 1998, entrevistei-o para a revista Fórum Ambiente. O seu passado ambientalista era tão rico como o de escritor. Em sua homenagem, junto aqui o meu Serafim, apesar de não constar ter ele ensinado qualquer gaivota a voar.


quarta-feira, 15 de abril de 2020

DO PLANALTO (OU A QUIMERA)

Faço uma busca no Google usando as palavras "covid" e "planalto": dá-me uma lista de 22 400 000 resultados! A palavra "planalto", sobretudo na boca das nossas autoridades de Saúde, é pior que a pandemia. Aliás, leva-me a crer em três hipóteses: 1) eles sabem que mesmo que haja um "planalto" de casos, tal não significa nada em termos de evolução futura; ou 2) não sabem o que andam a dizer e a fazer; ou ainda 3) tratam-nos como crianças a quem se promete um rebuçado se se portar bem (e o rebuçado não existe).
Tal como se veio a verificar com as máscaras - que durante semanas, incluindo no site da OMS - eram indicadas como propiciadoras de contágio para agora se transformarem em "salvíficas" -, a insistência no "planalto" é nesta fase apenas, na melhor das hipóteses, uma canção de embalar. Como ainda não se conhece o comportamento do SARS-CoV-2 ignora-se se a sua actividade decairá com a aproximação do Verão no Hemisfério Norte. A vírus da gripe A (H1N1), em 2009, teve o seu pico de casos em Portugal no mês de Agosto.
Não sendo epidemiologista, sei pensar pela minha cabeça e fazer umas análises sem ser necessário curso de Medicina; pelo contrário. E assim, perante o que se ignora sobre o SARS-CoV-2, deu-me para observar como se comportaram outros vírus em surtos gripais mais intensos em Portugal para verificar se existe um único padrão, se houve sempre “planaltos” ou outros “acidentes orográficos”.
Escolhi assim, por terem sido os que causaram maior mortalidade (e, portanto, haverá uma forte correlação entre a actividade dos vírus e a variação dos óbitos), os surtos de 2011-12; 2014-15; 2016-17; 2017-18 e 2018-19, observando, para cada, os períodos de Outubro até 15 de Abril. Usei médias móveis de 5 dias para atenuar variações diárias.
Ora, como se pode observar nos gráficos que anexo, no surto de 2011-2012 verificou-se uma subida da mortalidade quase constante desde o princípio de Dezembro até à terceira semana de Fevereiro, tendo depois havido uma descida da mortalidade para níveis “normais” até Abril. Foi um surto longo e sem qualquer planalto.
O surto de 2014-2015 teve o seu início sobretudo em meados de Novembro, registando um incremento maior na mortalidade no início de Janeiro, até alcançar um pico nos 450 óbitos a meio desse mês, demorando depois disso três longos meses para se atingir níveis “normais”. Também não se observa qualquer planalto.
O surto de 2016-2017 principiou no início de Novembro, com um incremento mais significativo em meados de Dezembro, registando-se um pico extraordinariamente elevado no início de Janeiro. Iniciou-se depois uma brusca descida na mortalidade, mas apenas durante cerca de duas semanas, observando-se um segundo pico (menos intenso que o anterior), descendo finalmente a mortalidade para níveis “normais” no final de Fevereiro. Foi um surto muito intenso, mas de curta duração. Também não se observa qualquer planalto.
O surto de 2017-2018 iniciou-se em Novembro e teve uma evolução ´sui generis’, em “escada” (rápida subida abrupta, de curta duração, seguida de uma curta estagnação, seguida de nova subida abrupta), com dois degraus de Novembro e Dezembro. Em seguida observou-se, desta vez sim, uma espécie de planalto, com variações durante dois longos meses (Janeiro e Fevereiro), com níveis de mortalidade a rondarem quase sempre os 400 óbitos diários. Este surto gripal foi extremamente longo e intenso, sem um pico denunciado, e apenas terminou em finais de Abril (não incluído no gráfico). Muito por via desta situação, o ano de 2018 foi o mais mortífero em Portugal desde sempre (113.600 óbitos).
Por fim, o surto de 2018-2019 começou com maior intensidade na segunda quinzena de Dezembro, atingindo-se um pico na segunda semana de Janeiro, sucedendo-lhe um período de variações na mortalidade que, de certa forma, criaram duas “bossas” até quase finais desse mês. Por fim, nos meses de Fevereiro e Março observou-se um longa e suave descida da mortalidade até se atingir os níveis “normais”. Não se vislumbra qualquer planalto.
Em suma, o “planalto” não tem sido muito frequente em surtos gripais e, além disso, não me parece que indiquem coisa alguma, i.e., enquanto se se está a "viver" uma estagnação jamais se pode saber a priori se se está na antecâmara de nova subida ou na beira de um descida definitiva. Aliás, na verdade, observando o surto gripal de 2019-2020, a mortalidade causada pela covid-19 tem, até este momento, um “comportamento” muito similar, embora até muito menos intenso. No entanto, obviamente, não faz sentido estarmos a garantir que se está num qualquer planalto, ou que que isso é um bom sinal. Enfim, o planalto (não) é sinal de coisa nenhuma. É apenas uma canção de embalar. E eu, pelo menos, já não tenho idade para isso. Ou se tenho, não quero que seja o Governo a cantar.







DO REBANHO

E, portanto, se o Presidente da República diz que já vê a luz ao fundo do túnel, aí vamos nós...
Enfim, isto não anda nada controlado, mas já se está a preparar o povo para que, mansamente, muitos venham a ter de dar mesmo o “corpo às balas”, i.e., ao coronavírus, de contrário não morremos da doença, morremos da cura.

terça-feira, 14 de abril de 2020

DA DOCE GRIPE E DA COVID TERRÍVEL

Anteontem escrevi um post onde lamentava a indiferença com que as gripes são olhadas pela sociedade, por todos nós, por se julgar ser problema expectável e controlado. E que, por isso, qualquer comparação com a covid-19, argumentaram muitos (alguns rotulando-me com epítetos pouco abonatórios para a minha inteligência), não era ajustada.
Ora, primeiro, não foi minha intenção principal comparar a mortalidade da covid-19 com a dos surtos gripais, pese embora estudos indiquem que, a nível, mundial causam uma mortalidade média de 389 mil pessoas (vd. link em baixo). Na verdade, foi minha intenção principal chamar a atenção para o facto de, ao desleixarmos a gravidade de uma doença recorrente, mas que está longe de ser controlada e de efeitos expectáveis, não apenas “deixamos” morrer muitos (e muitos idosos) como ficamos assim menos preparados para enfrentar (como agora está à vista) um vírus (SARS-CoV-2), que é efectivamente mais perigoso do que os vírus da gripe (geralmente, Influenza).
Mas volto à liça para mostrar, aos mais cépticos, que a “gripezinha” não é uma pêra doce. Nem sequer de efeitos expectáveis, mesmo se sabemos que chega quase sempre no Inverno (analisarei isso mais tarde). Se olharmos para a variação da mortalidade em Portugal ao longo de um qualquer ano, verifica-se que, grosso modo, há uma “base de óbitos”, chamemos assim, que ronda as 260 mortes por dia (entre Junho e Outubro a média diária de óbitos situa-se entre os 250 e 270). Esta “base” corresponde, obviamente, às mortes pelas mais diversas causas que, por regra, provocam estragos em qualquer época do ano. Sobretudo nos meses de Inverno e uma parte do Outono e Primavera, o factor que mais determina o aumento nos números da mortalidade são a gripe, e em alguns contextos por “acumulação” o frio (no Verão também as ondas de calor, mas de forma mais esporádica). E aí, acreditem, as gripes podem ser um flagelo (muito diferenciado, e mais ou menos significativo em função dos anos), quase sempre imprevisível no número de vítimas e na amplitude temporal dos seus efeitos. Mas é previsível num aspecto comum: aniquilam sobretudo os mais idosos (idade superior a 75 anos), tal como a covid-19.
No primeiro gráfico (G1) que apresento hoje podem visualizar a evolução da mortalidade durante um dos surtos gripais mais intensos dos últimos nos últimos anos (2016-2017), que nem foi o mais mortífero, mas que se salienta pelo pico elevadíssimo no início de Janeiro (578 óbitos no dia 2). No período de Outubro de 2016 a 15 de Abril de 2017 registou-se uma média diária de 337 óbitos (mais de 70 óbitos por dia acima do habitual nos outros meses), atingindo, contudo, uma média diária de 409 óbitos nos meses de Dezembro de 2016 e Janeiro de 2017 (quase 150 óbitos a mais do que o habitual nos meses mais avançados da Primavera e no Verão). Note-se que durante essa época gripal (Outubro-Maio) foi estimado pelo INSA um acréscimo de 4467 óbitos devido a este surto gripal. Saliente-se, porém, que estes valores são estimativas que entram também em linha de conta valores expectáveis, com intervalos de confiança e períodos gripais anteriores.
No segundo gráfico (G2) mostro como evoluiu a mortalidade nas pessoas com mais de 75 anos a partir de 1 de Outubro de 2016, que começou a aumentar a partir da segunda semana de Outubro, ultrapassando aí os 200 óbitos por dia. Até ao fim da primeira quinzena de Dezembro desse ano, a mortalidade neste grupo etário subiu ainda mais, mas de forma mais ou menos errática, para níveis próximos de 250 óbitos diários. A partir dessa data nota-se que o surto gripal começou então a fazer enormes estragos. Com efeito, entre 22 de Dezembro de 2016 e 1 de Fevereiro (42 dias) registaram-se 33 dias com mais de 300 óbitos entre a população com idade superior a 75 anos. No dia 2 de Janeiro chegou aos 436 óbitos, mais 258 óbitos do que no dia 1 de Outubro, no início da série temporal em análise. É uma diferença muito significativa para uma doença tão menosprezada.
Note-se também neste segundo gráfico (G2), a variação dos óbitos na faixa etária dos menores de 75 anos: não acompanha a variação nos óbitos dos mais idosos, confirmando-se assim que geralmente as gripes comuns actuam como a covid-19, i.e., são especialmente mortíferas na população com mais de 75 anos. E muitíssimo mais. Aliás, para se destacar a vulnerabilidade deste grupo etário também à gripe, observe-se o terceiro gráfico (G3) onde se apresenta, para a mesma série temporal respeitante ao período gripal de 2016-2017, a relação entre óbitos da população com mais e com menos de 75 anos. Se antes do surto gripal esta relação rondava os 2 (i.e, por cada três óbitos, dois eram de pessoas com mais de 75 anos), quando a gripe começou a atingir maior letalidade a relação subiu sistematicamente, entre finais de Dezembro e primeira quinzena de Fevereiro, para valores acima de 3 (i.e., por cada quatro óbitos, três foram de pessoas de pessoas com mais de 75 anos).
Por fim, e fazendo isto de uma forma muito simplista – interessa-me aqui, agora, transmitir uma ordem de grandeza que reflicta a realidade –, se assumirmos que, sem gripe (associada a condições mais adversas típicas do Inverno), será expectável uma média diária de 200 óbitos no grupo etário com mais de 75 anos, então observe-se a área inferior limitada pela linha vermelha do gráfico 4. Mostra-se aí, pelo somatório, o número de óbitos causados exclusivamente pela gripe nesse período. Fazendo as contas, entre 1 de Dezembro de 2016 e 31 de Janeiro de 2017 contabilizam-se mais 6.330 óbitos de pessoas com mais de 75 anos (i.e, somando todos os óbitos acima dos 200 por dia). De uma forma simplista, significa que, sem qualquer gripe naquele período, haveria cerca de 6.330 idosos com mais de 75 anos que teriam continuado vivos.
Por tudo isto, e em tom de conclusão, penso ter mostrado aqui que a doce gripe afinal sempre foi, e continuará a ser, um flagelo se se achar que não se pode comparar as gripes à covid-19. Um flagelo é sempre um flagelo, mesmo se houver um flagelo maior. Menosprezar um flagelo porque afinal apareceu um flagelo maior é um erro grave [faz-me lembrar um pouco a situação dos incêndios florestais: quando começamos a pensar que afinal não era um flagelo termos incêndios de 5 mil hectares, acabámos por “reunir” condições para termos incêndios de 50 mil hectares…].

Por tudo isto, sendo certo que não foi o menosprezo às gripes que nos trouxe a covid-19, parece-me contudo uma evidência que se tivéssemos levado (aqui e em quase todo o Mundo) as gripes como um problema muito sério talvez tivessem sido salvas muito mais pessoas e, por outro lado, possuiríamos agora mais mecanismos, melhores estratégias, mais e melhores equipamentos e pessoal médico treinado e capaz para “atacar” pandemias como as da covid-19. A forma como temos abordado as gripes reflecte-se, e não pensem que não, na forma como podemos ser mais ou menos afectados pelo surgimento de um novo vírus. As fatalidades também somos nós que ajudamos a criar.