Há 10 meses, se alguém andasse buscando por empresas de brindes que fizessem estampagens de t-shirts, porventura depararia com a ENERRE, uma empresa conhecida sobretudo por comercializar brindes e outros artefactos de merchandising.
Não ficaria, contudo, bem impressionado com as avaliações de clientes: no Google, em 38 comentários, 15 são de 1 estrela (em 5). Um dos clientes afiança que «a qualidade dos produtos é baixa, os atrasos são constantes. O atendimento ao cliente do péssimo”. Outro, assegura que eles, a ENERRE, “pensam em tudo, menos no cliente», dando uma dica: “se quiserem estampados em preto, peçam em branco”. As queixas não são apenas de índole cromática. Um outro cliente lamenta que «sempre que a roupa é lavada, a roupa encolhe cada vez mais”, acrescentando que “só com 5 ou 6 lavagens, uma sweat tamanho L já está mais pequena do que roupa de 14 anos”. E, para terminar, mais um decepcionado cliente acusa a Enerre de vender gato por lebre: “Tshirts? Parecem tops…”.
Enfim, tudo isto se passou, de acordo com a data destes comentários, antes do início da pandemia, mas serão, porventura, frutos de más-línguas. Na verdade, os qualificativos da ENERRE só podem ser muito melhores. Excelentes, até. Talvez até fantásticos, tanto assim que diversas autarquias, alguns hospitais e até o Estado-Maior-General das Forças Armadas não duvidaram ser esta empresa, com estabelecimento ali para os lados da Matinha (Lisboa, vd. foto), a adjudicante ideal para, sem concurso público, e portanto por ajuste directo, lhes venderem uma parafernália de materiais e produtos de protecção contra a covid.
Foi coisa pouca: desde Abril até 8 de Outubro de 2020, a ENERRE já encaixou, por via de 89 contratos por ajuste directo relacionados com a pandemia, a exacta maquia de 22.578.166,94 euros. Vamos aqui pôr em extenso, como se fosse um cheque passado pelos contribuintes: vinte e dois milhões, quinhentos e setenta e oito mil, cento e sessenta e seis euros e noventa e quatro cêntimos.
Acresce ainda a esta pecúlio, o único contrato ganho por concurso público (ou seja, a ENERRE terá tido concorrência) no valor de uns “trocados”: 13.500 euros.
Para se ter uma ideia do Euromilhões que saiu aos gerentes da ENERRE – e, ironicamente, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) também lhes fez ajustes directos para material relacionado com a covid –, durante o período homólogo do ano passado (Abril-14 deOutubro) esta empresa apenas conseguiu arrecadar 122.914 euros a partir de entidades públicas. Ou seja, comparando com 2019, estes sete meses e meio do ano de 2020 registou um crescimento da facturação, apenas considerando os contratos públicos associados à covid, de cerca de 184 vezes mais!
Excluindo os contratos da covid, este ano seria um ano “corriqueiro” para a ENERRE: no âmbito da sua habitual actividade, obteve apenas sete contratos públicos (quatro dos quais por ajuste directo), totalizando 177.388 euros. Ou seja, sem pandemia, nunca a Enerre sonharia com milhões.
A ENERRE teve direito a pequenas notícias em Março e Abril, quando alguns jornais (Público, Eco, Sábado, i, Visão, etc.) começaram a divulgar alguns ajustes directos com a autarquia de Cascais. Mas na espuma da pandemia, o caso ficou esquecido, e o negócio continuou a florescer, e muito, em outras paragens. Com efeito, sendo certo que a edilidade de Cascais (e uma sua empresa municipal) lidera o montante de ajustes directos (já vai em 11,55 milhões de euros), outras entidades fizeram entretanto a empresa (que faz t-shirts encolher tanto que parecem top) afzer engordar o mealheiro: a autarquia de Lisboa “contribuiu” já com 1,57 milhões (em dois ajustes directos); as Forças Armadas com 1,30 milhões (em três ajustes directos) e o Hospital Fernando da Fonseca com 1,42 milhões (em 11 ajustes directos).
Em valores mais reduzidos (mas em alguns casos de centenas de milhares de euros) estão ajustes directos adjudicados pela SCML, por mais 12 entidades hospitalares, por mais 9 autarquias (Albergaria-a-Velha, Albufeira, Aveiro, Ílhavo, Oliveira do Bairro, Santiago do Cacém, Sever do Vouga, Sines e Sintra) e por diversos institutos públicos, wentres outros.
Tudo isto está no portal BASE – contratos públicos online. Tudo isto é legal. Tudo com o nosso dinheiro. Tudo isto é imoral. Tudo isto a continuar nos próximos meses. O regabofe vai ainda no adro. E máscaras e fatiotas de protecção são peanuts. Manter tudo isto vai dar muito dinheiro a uma pouca gente. Nada de novo. Já se viu o filme no passado.