quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

DO "DIZ QUE SOU UMA ESPÉCIE DE JORNALISTA" OU DA LIÇÃO DE JORNALISMO DE UM EX-JORNALISTA

Eu sei que Ricardo Ramos é jornalista do Correio da Manhã (havendo quem defenda que possa servir de atenuante), mas há limites para a indigência profissional. Escreve o dito na edição de hoje do jornal mais lido de Portugal: "Os cientistas já tinham avisado e o exemplo da epidemia da febre espanhola de 1918 também fazia prever o pior. E confirmou-se. A segunda vaga da pandemia na Europa, ainda em curso, está a ser muito mais mortífera do que a primeira vaga, entre março e julho".

Não exijamos a uma pessoa, a quem a Comissão de Carteira Profissional de Jornalista concedeu o direito a ganhar a vida a montar letras, mesmo se mais de nove meses após a chegada da covid a Portugal, que saiba que em 1918 houve uma epidemia de gripe, baptizada de espanhola, e não de "febre". Esqueçamos esse, assumamos, lapso. Porém, já não é admissível que haja gajos (e também gajas, para não fazer discriminação de género) que escrevam profissionalmente como jornalistas, mas que insistem, na sua ignorância e/ou má-fé, em não ler, em não pesquisar sobre a gripe espanhola e sobre a covid, de sorte a não fazerem comparações sensacionalistas, e que somente alimentam, criminosamente, o pânico.

A gripe espanhola é, e será sempre de outro campeonato. Vamos lá fazer umas breves comparações, mesmo se a covid ainda anda por cá:

1) A mortalidade pela gripe espanhola nunca foi determinada com rigor, sendo apresentadas estimativas que variam entre os 17 milhões e os 100 milhões de óbitos. O valor mais indicado (por exemplo, pelo CDC dos Estados Unidos) é de 50 milhões. Tendo em consideração que, na segunda década do século XX, viviam cerca de 1,8 mil milhões de pessoas, isto dá uma taxa de mortalidade global de 2,7%. Por sua vez, a covid matou, até agora, um pouco menos de 1,6 milhões de pessoas, mas para uma população mundial de 7,8 mil milhões. A taxa de mortalidade por covid é, assim, de 0,02%. Ou seja, a GRIPE ESPANHOLA teve, pelo menos, uma "agressividade" (causadora de mortes) cerca de 130 VEZES MAIOR DO QUE A COVID. E, aliás, conforme se pode observar no gráfico (Our World in Data), a covid ainda não atingiu os níveis de mortalidade da gripe asiática de 1957-58 e da gripe de Hong Kong de 1968-69, porquanto no início da década de 60 a população rondava os 3 mil milhões e somente se chegou aos 4 mil milhões em 1975 (Gráfico 1).

2) A evolução da mortalidade da covid, numa perspectiva mundial, não tem sido por ondas. Antes sim, conforme se pode observar no segundo gráfico (Worldometers), evidenciou-se um crescimento abrupto em Março, até Abril, e depois a mortalidade andou num patamar entre Maio e Setembro, estando agora a aumentar ao longo do Outono, mostrando um perfil de sazonalidade típico das doenças respiratórias (Gráfico 2). Convém, no entanto, referir que poucos são os países da Europa que assistem a uma segunda onda pior do que a vaga da Primavera, sobretudo porque os países em pior situação desde Novembro não tinham registado níveis elevados de mortalidade por covid (sobretudo países de Leste). Mesmo no caso dos Estados Unidos, que apresentam agora uma mortalidade bastante superior à Primavera e Verão, verifica-se que são os Estados não afectados na primeira vaga que se encontram agora a ser flagelados. Por exemplo, o Estado de New York, particularmente fustigado na Primavera, chegando a valores de óbitos próximos dos 1.000 por dia, está agora com uma média diária inferior a 80 (equivalente a cerca de 40 óbitos em Portugal).

3) A suposta probabilidade de ocorrência de uma pandemia de covid por ondas – sendo que a segunda seria sempre pior do que a primeira, como uma espécie de castigo para quem não acreditou na perigosidade da primeira –, assemelhando-se à gripe espanhola, constitui um enviesamento histórico da realidade. Na verdade, é certo que a mortalidade da gripe espanhola foi ocorrendo sobretudo entre 1918 e 1920, sendo que no Outono de 1918 (segunda fase) se registou a maior parte das mortes a nível mundial. Contudo, essa variação à escala mundial em três ondas resultou sobretudo da disseminação dessa pandemia no Mundo em fases distintas. À escala de um país ou de uma região não se observaram três ondas de mortalidade, como se, depois de uma “visita mortífera”, outras pudessem surgir para matar muito mais. Na verdade, a mortalidade foi maior ou menor em função de factores sociais e demográficos. Por exemplo, na maior parte dos países da Europa, embora a gripe espanhola se tivesse mantido presente ao longo de pelo menos três anos, a mortalidade atingiu valores elevados apenas durante um período relativamente curto (três ou quatro meses). O Reino Unido foi dos poucos países em que claramente se detectam três ondas de mortalidade. No caso português, a mortalidade associada à gripe espanhola teve apenas expressão relevante (e muito) entre Setembro e Dezembro de 1918 (cf. gráfico 3, retirado de um artigo científico "Mortality burden of the 1918-1919 influenza pandemic in Europe", vd. aqui).

4) Um outro aspecto que mostra o quão abusivo é querer-se colar a gripe espanhola á covid refere-se à idade das vítimas. Sabendo-se hoje que a covid constitui um perigo sobretudo para a população mais idosa (a idade é o factor de risco mais elevado) e/ou com algumas comorbidades específicas (o que felizmente limita a sua gravidade em termos de saúde pública), a gripe espanhola afectava toda a população, e em especial os jovens, como se pode ver num dos gráficos do artigo científico "The Spanish influenza pandemic in occidental Europe (1918-1920) and victim age" (vd. aqui).

E fico-me por aqui, terminando com um conselho para Ricardo Ramos e demais colegas: ser jornalista não é apenas juntar palavras. É fazer o que eu fiz para escrever este simples post. Di-lo um vosso ex-camarada. E ex, felizmente, porque muitos de vocês andam a envergonhar uma profissão que já foi nobre.






3 comentários:

  1. Pedro Vieira, apesar destes gajos e gajas nada mais merecerem do que um traque de coelho [*]...

    [*] medida que meu Pai usava para este tipo de coisas, sendo Primeiro Assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa

    ... merecem um contraditório que os enterre bem — como o que acaba de publicar.

    Directamente, creio que não o poderei ajudar. Se achar que sim diga-me (tem o email).
    Mas já escrevi faço a minha guerra contra a 'stupid-and-demia', crime que por aí anda.
    Ainda ontem informei uns cafeinómanos [como eu] que o que era mesmo bom seria a invenção uma vacina contra a morte. Quem os teve, verbalizou a concordância e um cidadão adicionou que valia todos os Nobeis...
    oliveira

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  2. Boas Pedro, há muito vou seguindo o blog que muito tem servido para me manter de boa saúde mental, por vezes leio e vou espreitar as fontes e gráficos sempre úteis para a fundamentação. Ontem, pelo facto de supostamente os casos diários andarem com números mais baixos de há uma ou duas semanas, questionei-me de quantos testes andarão os artistas a fazer diariamente, há alguma fonte onde beber essa informação?

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    1. Não olho muito para o número de casos absolutos mas para os casos positivos a partir dos 70 anos. Pelo que vejo nos últimos 15 dias teremos "garantia" de óbitos muito próximo da centena até ao fim do ano.

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